No dia seguinte, já na casa da Nora, no Rio, o Ronaldo me perguntou: ‘Como é aquele negócio que você estava cantarolando mesmo?’ Então eu me lembrei mais ou menos da melodia e a gente fez O Barquinho.” Mergulhar, na época, era um esporte novo, e Menescal foi um dos primeiros a dominar o mar, chegando a virar notícia de jornal quando capturou um enorme mero nas águas de Cabo Frio. Além de Menescal também eram freqüentadores assíduos das pescarias Ronaldo Bôscoli, Chico Feitosa, Chico Pereira, Toninho Botelha e Normando Santos. Eventualmente, também Luiz Carlos Vinhas e Luizinho Eça. E Nara Leão, enquanto namorava Bôscoli. Menescal mantinha alugada em Cabo Frio, com o fotógrafo Chico Pereira, uma pequena casa de sala e quarto, onde às vezes dormiam mais de dez pessoas. Na única vez que conseguiram arrastar João Gilberto para Cabo Frio, ele se recusou a entrar no barco e ficou esperando na praia, com o violão, No fim da tarde, quando voltaram, ele estava na mesma posição, muito vermelho e reclamando muito: “Por que vocês fazem isso comigo?”. Desta época de pescarias, além de O Barquinho, Menescal e Bôscoli compuseram, entre outras, Rio, Nós e o Mar, Ah, se Eu Pudesse, A Morte de Um Deus de Sal. Entre 1958 e 1959, Tom Jobim lançou diversas canções que se tornaram clássicos da Bossa Nova: Meditação, Discussão, Samba de Uma Nota Só (com Newton Mendonça), Dindi, Demais e Eu Preciso de Você (com Aloysio de Oliveira), Este Seu Olhar, Fotografia (só dele), A Felicidade, O Nosso Amor, Eu Sei Que Vou Te Amar (com Vinícius). Sylvinha Telles cantou a maioria delas nos dois LPs que gravou em 1959: das 24 canções, 18 eram de Jobim. Em agosto de 1959, os estudantes de Direito da PUC resolveram organizar um show com os artistas da Bossa Nova. As principais atrações seriam as já consagradas Sylvia Telles e Alaíde Costa, além da vedete Norma Bengell, que mostraria além de seus dotes físicos os seus dotes de cantora. Os músicos convidados seriam Roberto Menescal, Luiz Carlos Vinhas, Carlos Lyra, Nara Leão, Normando Santos, Chico Feitosa e os irmãos Castro Neves, entre outros. Ronaldo Bôscoli, que seria o apresentador, prometera levar também Vinícius de Moraes, Tom Jobim, Billy Blanco e Dolores Duran. Os padres da PUC autorizaram a realização do show, mas com uma condição: a saída de Norma Bengell, cuja presença na universidade católica havia sido vetada. Como os organizadores não queriam abrir mão da presença dela (“turma era turma...”) o show acabou sendo transferido para a Faculdade de Arquitetura, na Praia Vermelha. O episódio do veto a Norma ganhou as páginas dos jornais, que o noticiaram com fartura. O resultado é que, no dia do espetáculo, 22 de setembro, centenas de pessoas se aglomeravam na porta da Arquitetura para assistir ao “show proibido”. Apesar do amadorismo gritante do espetáculo, a noite foi um sucesso. Norma Bengell apresentou-se toda de negro e foi aplaudida de pé, mostrando cinco canções do disco Ooooooh Norma! que ela gravara pela Odeon. Alaíde Costa interpretou brilhantemente Chora Tua Tristeza, de Oscar Castro Neves e Luvercy Fiorini. Até Luiz Carlos Vinhas e Ronaldo Bôscoli cantaram. O primeiro entoou Desafinado e Chega de Saudade, enquanto o segundo mostrou Mamadeira Atonal, composição sua que nunca chegou a ser gravada. Os prometidos Vinícius, Tom, Billy Blanco e Dolores compareceram para prestigiar, mas não subiram ao palco. Os jornalistas Ronaldo Bôscoli e Moysés Fuks encarregaram-se da repercussão do evento na imprensa, respectivamente na revista Manchete e no jornal Última Hora, Todos queriam saber o que era exatamente aquela música tocada ali, se era jazz, se era samba. Mas Tom Jobim e Newton Mendonça já haviam definido: aquilo era Bossa Nova. A partir daí, todos queriam escutar Bossa Nova e os convites para shows e reuniões começaram a proliferar. O grupo fez espetáculos na Escola Naval (do qual participaram também Lúcio Alves, Sylvinha Telles, Alaíde Costa e Norma Bengell), no Colégio Santo Inácio, no Franco-Brasileiro, no auditório da Rádio Globo, este último transmitido ao vivo do auditório na Rua Irineu Marinho e do qual participaram Os Cariocas, já com a formação que virou oficial: Severino, Badeco, Quartera e Luís Roberto. Naquela época, gravadores de som não eram muito comuns nas mãos de não-profissionais. Uma das poucas pessoas que possuíam gravador era Jorge Karam, amigo de toda a turma da Bossa Nova e um apaixonado por música. Graças ao hobby de Karam ficaram preservados importantíssimos momentos da vida do movimento e de seus participantes. Do show da Arquitetura e da Escola Naval, como tantos outros, o único record que existe são as preciosas gravações de Karam a quem a história da Bossa Nova muito deve.Em breve, ter representantes da Bossa Nova numa reunião era sinônimo de status. A presença de João Gilberto numa festa, então, era disputadíssima. Todo mundo anunciava sua presença, mas era raro ele aparecer. Em compensação, quando o fazia, deixava seus ouvintes exaustos: muitas vezes tocava até o amanhecer. Alguns locais do Rio passaram a ser sinônimos da Bossa Nova, sendo raras as noites em que os compositores do grupo e seus amigos não se encontrassem. Além da casa de Nara Leão, as casas de Lula Freire, Geraldo Casé, Chico Pereira e Jorge Karam eram verdadeiros templos do movimento. As reuniões em casa de Marilene Dabus e Bené Nunes eram outro ponto de encontro dos músicos e compositores. Um pouco mais tarde, as casas do advogado Nelson Motta, pai do compositor Nelsinho Motta, e do empresário Cícero Leuenroth, pai da cantora Olívia, que anos depois se casaria com o compositor Francis Hime, também eram refúgio seguro para a Bossa Nova. O movimento tinha muitos simpatizantes e admiradores de primeira hora. Um dos mais freqüentes às reuniões do grupo era o jornalista João Luís Albuquerque. Íntimo dos músicos e compositores, João Luís foi um dos maiores divulgadores da Bossa Nova, e certamente um dos seus mais importantes incentivadores. Muita gente passou a organizar festas apenas para mostrar aos amigos uma pretensa intimidade com o grupo. Proliferavam jantares e reuniões, tanto no Rio como já em São Paulo, muitas vezes oferecidos por diplomatas e pessoas da sociedade interessados na novidade musical. Um dos episódios mais hilariantes desta época aconteceu na casa do adido cultural da Argentina. A mulher de Normando Santos, Lolita, que trabalhava na embaixada argentina, foi encarregada pelo diplomata de organizar um jantar em seu apartamento, na Rua Siqueira Campos, em Copacabana. Naquela reunião estavam, entre outros, Luiz Bonfá, Maria Helena Toledo, Luiz Carlos Vinhas, Chico Feitosa, Lula Freire, Ronaldo Bôscoli, Roberto Menescal, Carlos Lyra, Roberto Carlos, Carlos Imperial, Luizinho Eça e até um membro do grupo apelidado de Milton Ilha Rasa, que tinha esta alcunha por causa do estado em que ficavam seus olhos após atravessar as emoções e exageros da noite. O apartamento do diplomata tinha várias salas. Numa delas se instalaram diplomatas, músicos e compositores. Em outra foi colocada uma enorme mesa com vários pratos decorados, arranjos de flores e um belo leitão assado. O dono da casa, aflito, esqueceu a diplomacia e começou a insistir para que o show começasse. Nada incomodava mais os integrantes da Bossa Nova do que, em vez de se sentirem convidados, serem considerados apenas como músicos aparentemente contratados para divertir uma festinha social. Enquanto os companheiros, de propósito, não se resolviam a tocar, Luiz Carlos Vinhas aproveitou para tomar um banho na suíte do apartamento. Usou todos os sais e perfumes da esposa do diplomata. Saiu limpíssimo, mas deixou o banheiro em situação caótica. Tanta insistência por parte do dono da casa acabou irritando Vinícius de Moraes, “Vamos dar uma lição nesse cara, vamos sumir com aquele leitão. Esconde o leitão “, instigou ele. Ronaldo Bôscoli gostou da idéia até porque o grupo seguiria da casa do diplomata diretamente para o fim de semana de pescarias em Cabo Frio, onde o leitão seria certamente muito mais aproveitado - e resolveu produzir o seqüestro. Ajudado por Vinhas, pegou o leitão, com bandeja de prata e tudo, e escondeu atrás de uma cortina. Vinícius só ria. (...) Continua na próxima postagem. Fonte: Revista Caras - Edição Especial de Julho de 1996.
Boa leitura - Namastê
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