Na mesma hora, o tão esperado show começou, e cada um tocou suas músicas, distraindo os animados convivas. Chico Feitosa e Bôscoli ficaram observando discretamente a sala de jantar. A certa altura um dos garçons foi até lá e levou aquele susto. Chamou um colega, ficaram os dois gesticulando e olhando para todos os lados em busca do leitão. Sem outra opção, levaram o problema ao dono da casa. “A gente não ouvia o que eles diziam, só via os gestos, o movimento dos lábios. Ele dizia ‘Como? Como sumiu?”, lembra Chico. Muito nervoso, o diplomata perguntou aos presentes se por acaso não haviam visto um leitão por ali. Obviamente, ninguém tinha visto leitão algum. Bôscoli, preocupado com a possível confusão, resolveu sumir de vez com o bicho. Numa operação complicadíssima, ele e Chico Fim de Noite embrulharam o leitão num jornal, depois numa toalha, deixaram a bandeja atrás da cortina e conseguiram contrabandeá-lo para o velho fusquinha de Bôscoli, estacionado nas imediações. O jantar acabou em clima de mistério, e no dia seguinte o prato foi devidamente degustado com “vivas” à Argentina, na alegre pescaria de Cabo Frio. Outro episódio que traduz o espírito irreverente da turma aconteceu na casa de uma condessa na Rua Dona Mariana, em Botafogo. A nobre senhora, anunciando uma noite de Bossa Nova, convidou o grupo e inúmeros socialites da época. Preparou um belo jantar, em que se comeu e bebeu à vontade. No fim da festa, na despedida à dona da casa, era preciso entrar numa fila para beijar a mão, que a condessa cerimoniosamente esticava a quem saía. O primeiro a entrar na fila foi Luiz Carlos Vinhas, num monumental pileque. Sem saber o que devia fazer, Vinhas simplesmente empurrou a mão da condessa para baixo e saiu. Mas este não foi o único insulto da noite. O pior ainda estava por vir. Chegou a vez de Zé Henrique Bello, artista plástico, freqüentador da Bossa Nova, que tentava se manter em pé na fila. A condessa esticou o braço. Zé Henrique segurou sua mão, parou para pensar em alguma coisa e acabou babando na mão da condessa. Percebendo a gafe, ainda tentou consertar: delicadamente limpou a mão da condessa na própria camisa e saiu, cambaleando. O pianista Luiz Carlos Vinhas sempre foi uma das mais divertidas figuras da Bossa Nova. Conta casos e inventa situações que já fazem parte da história do movimento. Numa noite, junto com Lula Freire e Chico Toselli, um amigo boêmio, foram para uma reunião de Bossa Nova no apartamento de uma bela morena carioca que morava na Avenida Nossa Senhora de Copacabana, e era conhecida muito especialmente pelos seus belos atributos físicos. Como já era tarde, por volta das 11 h da noite, e a portaria já estava fechada, ficaram os três por ali, olhando para cima e escutando o som da reunião no 3º andar, esperando que aparecesse alguém para abrir a porta. Não demorou muito, chegou um sujeito enorme, uma verdadeira ilha, que ao abrir a porta perguntou a Vinhas para onde eles iam. O pianista, que quando fica nervoso dá uma gaguejada, quis se fazer de engraçado e disse para o cara: “É ne-negócio de Bossa Nova. Va-vamos na casa da fulana. Aquela da-da bunda grande”. “O grandalhão, sem mover um músculo, respondeu: “É minha irmã”. Luiz Carlos Vinhas ficou lívido, e segurando imediatamente no braço do sujeito, muito sério arrematou: “Bu-bunda maravilhosa!”. O grandão acabou rindo e abriu a porto para os três. Já a salvo, no apartamento, Vinhas comentava que o pescoço do irmão era maior do que a bunda da dona da reunião. A mania de todo mundo querer se mostrar íntimo da Bossa Nova irritava de verdade os compositores. Uma das principais características de quem queria se mostrar “da Bossa Nova” era dizer que tinha intimidade com os compositores e que sabia cantar todas as músicas do grupo. Um dia Chico Feitosa resolveu pregar uma peça numa senhora da sociedade que adorava se fazer de íntima: no meio de uma reunião começou a cantar uma música inventada na hora: Volma. “Eu cantava: ‘Voooolma, veja só que lalalalá... veeeeenha...’. Eram apenas algumas palavras desconexas, e o resto eram sons sem sentido”, conta ele. E não é que a mulher fingiu conhecer a música, chegando a acompanhar Chico nos vocais? Em pouco tempo, o termo Bossa Nova começou a servir para dar nome a qualquer tipo de coisa, desde geladeiras a lançamentos imobiliários. Mas muita gente também começou a implicar com o movimento: alguns críticos sem nenhuma importância e algumas pessoas conhecidas que pertenciam a uma outra geração de músicos e compositores e preferiam os antigos estilos da música brasileira. O jornalista Antonio Maria, cuja música Ninguém me Ama era usada como exemplo do que absolutamente não era Bossa Nova, era um deles. O próprio Antonio Maria, inteligente, ótimo cronista e homem da noite carioca, brincava com sua própria letra, cantando: “Ninguém me ama, ninguém me quer ninguém me chama de Baudelaire”. Maria mantinha uma coluna diária no O Jornal, onde sempre encontrava uma maneira de criticar o movimento. Ele e Bôscoli quase saíram no tapa na porta do Little CIub, mas Aloysio de Oliveira chegou a tempo de apartar a briga. Os dois, no entanto, ficaram sem se falar para sempre. Outro ferrenho inimigo da Bossa Nova era Sílvio Caldas. O cantor afirmava, para quem quisesse ouvir, que a Bossa Nova nada mais era que um movimento passageiro e sem categoria, e que rapidamente acabaria. Lamentável engano do seresteiro. Em contrapartida, os jornalistas Moysés Fuks, João Luiz Albuquerque e Sylvio Túlio Cardoso formavam o trio de ouro na defesa e na divulgação do movimento. Muita gente de peso acabou aderindo, como os maestros Radamés Gnatalli, Léo Peracchi, Rogério Duprat, Julio Medaglia e Guerra Peixe. Ary Barroso (este menos) e Dorival Caymmi também se chegaram, prestigiando várias reuniões do grupo. João Gilberto foi apresentado a Astrud Weinert na casa de Nara Leão, Em pouco tempo eles começaram a namorar e se casaram, tendo Jorge Amado como padrinho. Alguns anos mais tarde, ela gravaria a versão em inglês de Garota de Ipanema no lendário disco Getz/Gilberto. Ainda em 1960, João gravou seu segundo disco, O Amor, O Sorriso e a Flor, que consolidaria definitivamente a Bossa Nova. Do repertório constavam Meditação (Tom Jobim e Newton Mendonça), Só em Teus Braços (Tom Jobim), Se É Tarde Me Perdoa (Carlos Lyra e Ronaldo Bôscoli), Corcovado (Tom Jobim), Discussão (Tom Jobim e Newton Mendonça), Um Abraço no Bonfá (um instrumental de João Gilberto), Doralice (Dorival Caymmi), Amor Certinho, Samba de Uma Nota Só (Tom Jobim e Newton Mendonça), O Pato, Outra Vez e Trevo de Quatro Folhas. Tanto Samba de Uma Nota Só quanto Desafinado tornaram-se clássicos do movimento. Também no início de 1960, houve o primeiro rompimento sério na Bossa Nova. Carlos Lyra resolveu não esperar que André Midani, amigo dos compositores da Bossa Nova, diretor da Odeon, cumprisse sua promessa de gravar um disco com toda a turma e acabou assinando um contrato para um disco solo com a Philips, através de João Araújo. A notícia explodiu como uma bomba. Ronaldo Bôscoli não gostou nada da história e acabou rompendo com seu parceiro. O disco de Carlinhos, Bossa Nova Carlos Lyra, saiu com arranjos do maestro Carlos Monteiro de Souza contracapa com texto de Ary Barroso e canções como Rapaz de Bem (Johnny Alf), Chora Tua Tristeza, Ciúme, Barquinho de Papel, Gosto de Você, Quando Chegares e Maria Ninguém. Bôscoli já havia marcado um segundo show para a Faculdade de Arquitetura, no mesmo local onde acontecera o primeiro. O nome do espetáculo seria A Noite do Amor do Sorriso e da Flor, com a prometida presença de João Gilberto, Vinícius de Moraes, Os Cariocas, Johnny Alf e Norma Bengell. Por causa do desentendimento com Bôscoli, a turma de Carlos Lyra resolveu organizar outro show na mesma data, na PUC, contando também naquela noite com as presenças de Juca Chaves e Alaíde Costa. O show da Arquitetura foi infinitamente melhor: Johnny Alf compareceu e tocou seus dois grandes sucessos da epoca, Rapaz de Bem e Céu e Mar. Nervoso, o cantor e pianista precisou tomar um banho gelado antes de entrar no palco. O sempre irreverente Luiz Carlos Vinhas entrou no palco de velocípede. Outros que se apresentaram na mesma noite foram Nara Leão, Chico Feitosa, Claudete Soares, Sérgio Ricardo, o conjunto de Roberto Menescal, Luizinho Eça e os paulistas Pedrinho Mattar e Caetano Zama. Mas as duas grandes atrações da noite foram João e Astrud Gilberto, que fecharam o espetáculo. Outros cantores americanos também começaram a descobrir a Bossa Nova. Entre eles Sarah Vaughan, que viera ao Brasil pela primeira vez no ano anterior, e Nat King Cole, que gravara duas das faixas de seu disco latino com Sylvinha Telles. King Cole, inclusive, foi das poucas pessoas que fizeram João Gilberto aguardar algumas horas no corredor da Odeon esperando para ver o ídolo. Nat saiu e passou por ele sem saber de quem se tratava. Mais tarde, na casa de Tom Jobim, João comentaria: “Nat não é preto, é azul”. João Gilberto tornava-se cada vez mais perfeccionista. Certa ocasião foi convidado a fazer uma apresentação no programa Noite de Gala, que seria transmitido ao vivo do Tijuca Tênis Clube. O estádio estava apinhado de gente, e quando João começou a cantar “O pato... saiu cantando alegremente....”, todo o público respondeu em coro: “Qüém, qüém”, o que foi uma forma simpática de participação no show. Insultadíssimo, João simplesmente se calou, parou de tocar, disse baixinho ao microfone “eu não sou Miltinho” e retirou-se. Até hoje ninguém sabe muito bem o motivo da referência ao ex-crooner e pandeirista dos Anjos do Inferno, que estava nas paradas de sucesso com o samba Mulher de 30. A Bossa Nova logo se profissionalizou. O movimento deixara de ser um episódio carioca e tomava conta das rádios e televisões de todo o Brasil. Por todo o país violões passaram a ser vendidos como nunca. Músicos e compositores começaram a aparecer nas grandes e pequenas cidades, alegrando a música brasileira com a mensagem do amor, do sorriso e da flor. Em Belo Horizonte um grupo de rapazes e moças se encontrava para um bate-papo nas horas de folga, entre um estudo de Química e Física. Um violão ou piano quase sempre fazia parte da conversa. A explosão da Bossa Nova estimulou o grupo, que passou a cantar e tocar o novo som que vinha do Rio de Janeiro. De vez em quando alguém aparecia assobiando música nova de sua autoria. De repente surgiu a idéia de formar um conjunto próprio para tocar suas composições. A coisa era fácil: todos tocavam um ou mais instrumentos. O grupo, daí em diante, passou a reunir-se no sítio do pai de Pacífico Mascarenhas, nas proximidades de Belo Horizonte. Vai dia, vem noite, surgiu Sambacana, uma reunião musical na base de samba e cana, na qual eram apresentadas para os amigos as novas músicas. Os compositores e músicos do grupo eram Pacífico Mascarenhas (Pouca Duração, Começou de Brincadeira, Amor é Ilusão, Ônibus Colegial, Olhos Feiticeiros, Se Eu Tivesse Coragem, Mandrake), Roberto Guimarães (Amor Certinho, Serenata Branca, Menina da Blusa Vermelha), Alceu Nunes (Quantas Noites Ainda?, Estrada da Solidão), Gilberto Mascarenhas (Rosinha, Explicação), Marcos de Castro, violonista e arranjador do grupo, e Ubirajara Cabral, pianista e maestro do Coral de Ouro Preto, apontado pelo jornal O Globo como o melhor conjunto vocal do Brasil em 1962. Durante as madrugadas, saíam eles de piano e violão, em cima de um caminhão, com o Coral de Ouro Preto, fazendo serenatas pelas casas das namoradas até o dia clarear. Nos antigos cenários mineiros, o som da Bossa Nova encantava a todos. Na Bahia, terra de João Gilberto, Carlos Coqueijo e Alcivando Luz, também amigos do cantor, apresentavam o novo som em suas casas e na casa de Nilde Almeida. Entusiásticos shows ocorreram no Teatro Castro Alves e na boate do Hotel da Bahia. Os músicos Perna Fróes, Tutti Moreno, Moacyr Albuquerque, Gecildo Caribé, Bira da Silva e Lula Nascimento esquentavam as noites de Salvador. Não menos importante para o movimento, em épocas diversas, foram os instrumentistas Genivaldo da Conceição, Lindenberg Cardoso, Fernando Lona e Djalma Correa. A semente plantada por João Gilberto mais tarde traria Gal Costa, Maria Bethânia, Caetano Veloso e Gilberto Gil para a cena maior da música brasileira. Euler Vidigal, no Maranhão, despontava como compositor e reunia grupos de intelectuais, músicos e apreciadores para ouvir a novidade. (...) Continua na próxima postagem. Fonte: Revista Caras - Edição Especial de Julho de 1996.
Boa leitura - Namastê
Nenhum comentário:
Postar um comentário