Enquanto um grupo cantava numa sala para uma plateia deleitada que se espalhava pelo chão — em festas de bossa nova ninguém sentava em cadeiras —, agindo rápida e sorrateiramente, um comando gastronômico sequestrava o peru assado que dominava a mesa na sala de jantar e sumia na noite. Havia muita gente na festa e o mistério nunca foi esclarecido. Embora quase todos os presentes tivessem um primeiro e óbvio suspeito: o gordo Carlos Imperial. O que fazia Carlos Imperial, cafajeste profissional da temida “Turma da Miguel Lemos” e animador de programas de rock and roll no rádio e na TV, numa festa de bossa nova em Copacabana? A “Turma da bossa nova” detestava o capixaba Imperial, desprezava seus roqueiros de araque, debochava de seus programas de auditório na TV e de suas platéias suburbanas. Mas o gordo não parava de agitar, promovendo shows, lançando cantores, ganhando dinheiro e comendo menininhas. “Meu jovem, belo e querido amigo!” era como Imperial saudava efusiva e invariavelmente amigos e desconhecidos e até inimigos, como uma caricatura de um político profissional, como um vilão de chanchadas da Atlântida. Imperial se defendeu: estava na festa para apresentar seu novo lançamento, um futuro príncipe da bossa nova. E alegando que seu lançamento ainda não havia sido lançado quando o peru foi roubado, o gordo se inocentou. Embora, tratando-se do cínico e debochado Imperial, tudo fosse possível. O cônsul levou na esportiva e diplomaticamente levantou um brinde ao “grande ausente” enquanto os convidados e penetras devoravam os acompanhamentos restantes. Depois do jantar, muita gente saiu, talvez para jantar, e os remanescentes voltaram à sala e se refestelaram no chão com o máximo de informalidade exigida, para uma segunda rodada musical. A turma de Ronaldo Bôscoli, as estrelas aspirantes da bossa nova como Nara e Menescal, já tinham tocado e cantado antes do jantar e todo mundo cantara junto com eles, baixinho, como era de bom-tom. Muitas músicas que ainda nem tinham sido gravadas já eram sucesso no circuito das festas, com muita gente cantando a letra junto. Bem baixinho. Para o segundo tempo, apesar do caso do peru e da subsequente debandada, Carlos Imperial iria encontrar um ambiente propício para seu lançamento: um bom público de jovens senhoras e fartura do que no futuro se chamaria de “formadores de opinião”. Todos espalhados pelo chão, entre almofadas, copos e cigarros. Alguns sem sapato, como recomendava a informalidade da bossa. Olhos e ouvidos descrentes aguardavam a surpresa imperial. Que pilantragem seria aquela? Imperial nunca teve nada a ver com a bossa nova, sacaneava a bossa nova, era do rock and roll. Mas o rock estava demorando a pegar no Rio, parecia não combinar muito com o ambiente de sol e praia, e o gordo, sentindo o potencial comercial da bossa, estava diversificando. Seu pupilo era magro e tímido, com cabelos crespos e escuros e pele muito pálida, tinha olhos profundos e tristes e sorria nervosamente. Quando Imperial, de chinelos e camisa havaiana, bateu palmas e empostou a voz: “Meus jovens, belos e queridos amigos, bossa nova é silêncio. Si-lên-ci-o. E eu peço o silêncio de vocês para apresentar o futuro príncipe da bossa nova.” Acompanhado por Durval Ferreira, o “Gato”, no violão, o jovem conterrâneo de Imperial cantou, com seus lábios finos e um fio de voz, bem afinadinho e até com certo charme, duas músicas de seu mentor, que ele tinha acabado de gravar. O rapaz imitava escancaradamente João Gilberto e a música era uma sub-bossa imperialesca. “Brotinho toma juízo, ouve o meu conselho, abotoa este decote, vê se cobre este joelho, pára de me chamar de meu amor, senão eu perco a razão e esqueço até quem eu sou...” As jovens senhoras adoraram. Foi a primeira vez que ouvi Roberto Carlos.Na febre da Bossa Nova, as academias de violão se multiplicavam pela Zona Sul do Rio e numa delas, na Rua Dias da Rocha, no coração de Copacabana, conheci Wanda Sá, Mauricio Tapajós, Edu Lobo, Marcos Valle e outros, uma nova turma. Era uma casa de vila de dois andares, onde Roberto Menescal, Samuel Eliachar e outros davam aulas de violão e principalmente onde os alunos se encontravam para conversar e tocar. Todos os meus amigos tocavam melhor do que eu, mas era uma felicidade estar entre eles, ouvindo, aprendendo e sonhando. Muitos dos alunos da academia logo se tornavam professores: os mestres iam ficando com as agendas lotadas e cada vez mais garotos e garotas queriam, precisavam aprender a tocar violão. (...) Continua nas Próximas postagem. Fonte: Enserto do livro, Noites tropicais: solos, improvisos e memórias musicais, Nelson Motta - Editora Objetiva, 2000 - 461 páginas
Boa leitura - Namastê
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