Edu Lobo, que já tocava razoavelmente de ouvido, foi para a academia para ser aluno de Wanda Sá, aluna de Menescal, que não tinha mais horários. Acabou tendo aulas com Samuel Eliachar e em pouco tempo já tinha aprendido o método e tinha quatro alunos: pagava as aulas de Samuel e ainda lhe sobrava o suficiente para transporte e lazer. . Algum tempo depois até eu tinha algumas alunas. Outro ponto de encontro era o Mau Cheiro, um botequim aberto para o mar de Ipanema, na esquina com Rainha Elizabeth. Era da praia para o bar e do bar para o mar, e vice-versa. De violão na mão. Muita gente achava cafonice, mas era com certo orgulho que atravessávamos a Avenida Vieira Souto de violão na mão. Quem carregava violão nas costas era Jucá Chaves, que era paulista e nunca teve nada a ver com a bossa nova. Com faro compatível com seu nariz, o esperto Jucá emplacou um hit com “Presidente bossa nova”, que de bossa nova não tinha nada, era mais uma paródia do novo ritmo, perfeita para ambientar um retrato satírico de JK e suas novidades. Jucá gostava mesmo era de modinhas, mas ao mesmo tempo em que pegou carona na confusão inicial da bossa, com o sucesso de sua música ele contribuiu para popularizar a expressão. E além de tudo, JK era realmente bossa nova. “Mas merecia música melhor...”, rosnavam os fundamentalistas da bossa e os guardiões de sua pureza, devotos da Santíssima Trindade — João, Tom e Vinícius. Nós nos considerávamos os apóstolos dos apóstolos. Mas tínhamos o supremo privilégio do acesso direto às divindades e a graça do testemunho. Mais que uma causa, vivíamos a bossa nova como uma religião. Na praia em frente ao Mau Cheiro, de preferência à tarde, embora alguns fanáticos tocassem e cantassem até mesmo ao sol do meio-dia —, formavam-se rodinhas de moças e rapazes em volta de alguém com um violão. Para cantar bossa nova, uma música que parecia ter sido criada para ser a trilha sonora das praias cariocas. Foi inspirado pelo querido botequim que fiz minha primeira letra, para um sambinha de Maurício Tapajós cheio de bossa: “Um chope , no Mau Cheiro.” Já o título estava mais para Bukowski e Kerouac do que bossa nova e todo mundo achou que não cheirava bem. Tentei uma outra, para a mesma música: “Amor de gente moça”, inspirado em um Lp de Sylvinha Telles de bossa romântica que tinha este título. Desta o pessoal (aparentemente) gostou: era uma sucessão de clichês românticos da bossa nova (“as flores não são flores/são amores sem saudade/ são cores feitas de felicidade...”). Como Maurício era filho de Paulo Tapajós, diretor e produtor da Rádio Nacional, vivi a emoção de ouvir nossa música no rádio, ao vivo, com um arranjo para grande orquestra de ninguém menos que Radamés Gnatalli e cantada por sua mulher, Nelly Martins. Ao vivo pela Rádio Nacional, numa noite carioca de verão. Minha mãe chorou. Nesse tempo, aquela música de praia era chamada pejorativamente de “música de apartamento”, como se fosse uma música restrita e fechada, distante das ruas, apesar de a bossa nova ser um grande sucesso popular, que ia muito além da classe média de Copacabana. Para nós o Rio era a Zona Sul, a praia de Ipanema e os bares de Copacabana. E o Brasil era o Rio e São Paulo e a construção de Brasília. Através de Jorge Amado, Guimarães Rosa e Érico Veríssimo conhecíamos um outro Brasil, de ficção, exótico e atraente, fascinante mas distante. Tão distante quanto os poetas da beat generation americana. Tudo parecia muito longe do Rio de Janeiro no final dos anos 50, mas a bossa nova começava a aproximar os jovens cariocas dos de São Paulo, de Salvador, de Belo Horizonte e de Porto Alegre. O rádio entrava em decadência, o disco e a televisão começavam a crescer no ambiente de liberdade, modernização e entusiasmo dos Anos JK. O apartamento de Nara era um luxo. Imenso, com dois salões envidraçados de frente para o mar de Copacabana. Chamava-se Champs Elysées, era um dos edifícios mais modernos e um dos endereços mais valorizados da cidade. Ipanema era quase só casas e árvores e a Barra da Tijuca era selvagem e inacessível. Chique era a Avenida Atlântica. Chique era a bossa nova. E o cool jazz. E o jazz-samba. Ou samba-jazz. Que para muitos eram praticamente a mesma coisa e assunto para muita discussão na praia e nos bares de Ipanema. As festas se sucediam, mas Tom e João raramente apareciam. Tinham discos gravados, eram profissionais, casados, tinham família para sustentar, trabalhavam. Viviam de música. E nós, para a música. Rock and roll era visto e ouvido entre nós como uma boçalidade, com seus três acordes primitivos, seu ritmo pesado e quadrado e seus cantores gritando e rebolando. Era a antítese da bossa nova e tão desprezado quanto o sambão tradicional. Era coisa de Carlos Imperial e de Jair de Taumaturgo, que movimentavam as tardes cariocas apresentando “Os brotos comandam” e “Hoje é dia de rock” na televisão, com garotos e garotas dançando o novo ritmo e calouros fazendo dublagens de sucessos do rock americano. “Alô, brotos, vamos tirar o tapete da sala... porque hoje é dia de rock!”, comandava Jair de Taumaturgo, veterano disc-jockey de rádio, um animado quarentão de cabeça branca, cercado de jovens no vídeo da TV Rio. Em casa, diante da televisão, a gente ria. Nos tapetes macios do apartamento de Nara, os brotos comandavam e geravam a música do futuro. Foi onde vi pela primeira vez, tocado por Luiz Carlos Vinhas, um piano elétrico, novidade absoluta. Nara tinha mesmo um look diferente. Parecia meio japonesa, meio índia, meio existencialista francesa, tinha uma voz pequena e tímida e vestia-se de uma maneira cool e moderna, sempre com as saias bem acima dos futuramente célebres joelhos. Nara era o protótipo da “garota moderna”, que não queria saber do luxo e da quadradice da sociedade carioca e estava disposta a quebrar tabus, trabalhar, ser independente, estabelecer novos padrões de comportamento. E de música. Encarnação da bossa nova, mais do que uma voz e um estilo, Nara tinha principalmente o que era mais fascinante no mundo do rock and roll: atitude. Uma atitude bossa nova. O rock parecia não se ambientar bem no calor do Rio ensolarado, sua agressividade e seus casacos de couro não combinavam com o clima relaxado e cordial da cidade nem com seu humor e simpatia. As platéias de Imperial e Jair de Taumaturgo vinham principalmente da Zona Norte e dos subúrbios. As praias da Zona Sul, antes do Túnel Rebouças, eram distantes e de penoso acesso, quase privativas dos locais: os habitantes das favelas da Catacumba, do Morro do Pinto, do Pavãozinho e da Rocinha, que conviviam em relativa paz e harmonia com a classe média de Copacabana e Ipanema, unificados pelas praias e pela paisagem deslumbrante. Para nós o Rio não era rock, era bossa nova. O pequeno estúdio da Rádio Guanabara, no Centro da cidade, se transformava em agitado auditório e se enchia de jovens para o programa “Os brotos comandam”, de Carlos Imperial. Curiosamente, a primeira parte do programa era de mímica. (...) Continua nas Próximas postagem. Fonte: Incerto do livro, Noites tropicais: solos, improvisos e memórias musicais, Nelson Motta - Editora Objetiva, 2000 - 461 páginas
Boa leitura - Namastê