A história da Bossa Nova é a história de uma geração. Uma geração de jovens artistas brasileiros que acreditaram no futuro e conseguiram realizar o sonho de levar sua música aos quatro cantos do mundo. As primeiras manifestações do que viria a ser conhecido como Bossa Nova ocorreram na década de 50, na Zona Sul do Rio de Janeiro. Ali, compositores, instrumentistas e cantores intelectualizados, amantes do jazz americano e da música erudita, tiveram participação efetiva no surgimento do gênero, que conseguiu unir a alegria do ritmo brasileiro às sofisticadas harmonias do jazz americano. Ao se falar de Bossa Nova não se pode deixar de citar Antonio Carlos Jobim, Vinicius de Moraes, Candinho, João Gilberto, Carlos Lyra, Roberto Menescal, Nara Leão, Ronaldo Bôscoli, Baden Powell, Luizinho Eça, os irmãos Castro Neves, Newton Mendonça, Chico Feitosa, Lula Freire, Durval Ferreira, Sylvia Telles, Normando Santos, Luís Carlos Vinhas e muitos outros. Todos eles jovens músicos, compositores e intérpretes que, cansados do estilo operístico que dominava a música brasileira até então, buscavam algo realmente novo, que traduzisse seu estilo de vida e que combinasse mais com o seu apurado gosto musical. Impossível precisar quando a Bossa Nova realmente começou. Mas é certo que o lançamento, em 1958, dos discos Canção do Amor Demais, com Elizeth Cardoso interpretando composições de Tom e Vinícius, e Chega de Saudade - 78 rpm, com o clássico de Tom e Vinicius de um lado e Bim-bom, de João Gilberto, do outro -, nos quais João surpreendeu a todos com a nova batida de violão, foi o resultado de vários anos de experiências musicais. Experiências empreendidas não só por João, mas por toda a turma que se encontrava nas famosas reuniões na casa de Nara Leão. Após o lançamento, em 1959, do primeiro LP de João Gilberto, também chamado Chega de Saudade, a Bossa Nova rapidamente se transformou em mania nacional e em poucos anos conquistou o mundo. Mas bem antes disso o Rio de Janeiro já vivia um raro momento de florescimento artístico, como poucas vezes se viu na história da cultura nacional. Não é à toa que os anos 50 são conhecidos como os "anos dourados". O Brasil vivia então um período de crescimento econômico que acabou se refletindo em todas as áreas. Em 1956, Juscelino Kubitschek tomou posse na Presidência da República com o slogan desenvolvimentista "50 anos em 5". No mesmo ano, foram lançados os romances O Encontro Marcado, do mineiro Fernando Sabino, e Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa, dois importantes marcos na história da literatura brasileira. Paralelamente, surgia na poesia um movimento inspirado no concretismo pictórico, cuja maior característica foi a valorização gráfica da palavra e do qual participaram nomes como os irmãos Augusto e Haroldo de Campos, Décio Pignatari e Ferreira Gullar, entre outros. Em 1957, estreava o filme Rio Zona Norte, de Nelson Pereira dos Santos, um dos primeiros representantes do que viria a ser chamado Cinema Novo. Em 1958, a Seleção Brasileira de Futebol conquistava sua primeira Copa do Mundo, derrotando a seleção sueca por 5 a 2 e levando o povo brasileiro a cantar alegremente "A copa do mundo é nossa / Com brasileiro não há quem possa". Também em 1958, Jorge Amado lançava Gabriela Cravo e Canela e Gianfrancesco Guarnieri estreava no Teatro de Arena de São Paulo Eles Não Usam Black-tie, um marco na linguagem do teatro brasileiro. Em 1959, era lançado o movimento neoconcreto nas artes plásticas, do qual fizeram parte Lygia Clark, Hélio Oiticica e Lígia Pape, entre outros. Em 1960, Juscelino Kubitschek inaugurava a nova capital do país, Brasília, que possivelmente teve a primeira música de Bossa Nova em sua homenagem, composta por Chico Feitosa. Billy Branco havia feito um sambinha jocoso, Não Vou, Não Vou Pra Brasília, e Chico musicou uma letra que falava da vida na nova cidade. O tema, chamado Paranoá, nunca foi gravado, mas encontra-se preservado numa gravação particular feita na época, com o próprio Chico Fim de Noite cantando. Foi neste contexto que surgiu o movimento que viria a revolucionar não só a música brasileira, mas toda a produção musical internacional. Ainda nos anos 40, a grande novidade musical foi o lançamento, em 1946, de Copacabana um samba-canção de João de Barro e Alberto Ribeiro, gravado pelo cantor Dick Farney com claras influências da música americana. A composição foi a precursora do que se chamou samba moderno, cujos grandes intérpretes foram o próprio Dick Farney e Lúcio Alves. A suposta rivalidade destes dois grandes cantores era alimentada pela imprensa e por seus fã-clubes. No início dos anos 50, eram eles, com suas vozes aveludadas, os maiores ídolos da juventude brasileira. Ao lado de Ary Barroso, Johnny Alf, Garoto, Dolores Duran, Luiz Bonfá e Tito Madi, entre outros, influenciaram decisivamente a formação da geração que se consagraria através da Bossa Nova. Na área de composição, quem mais havia ousado era o romântico Custódio, morto precocemente aos 35 anos, em 1945, autor de Mulher, Velho Realejo e Saia do Caminho, seu maior sucesso, e Noturno, composição de harmonia muito elaborada, de bela linha melódica e considerada, na época, um verdadeiro teste de interpretação para qualquer cantor ou cantora. Custódio, que compôs cerca de 700 canções, gravadas pelos grandes nomes da época, como Orlando Silva e Sílvio Caídas, já tentava misturar os recursos do jazz e da música erudita aos elementos da música brasileira. Também era moderno gostar de conjuntos vocais como os Garotos da Lua, do qual João Gilberto foi crooner, e os Quitandinha Serenaders, que contavam com Luiz Bonfá ao violão. Ou ainda Os Cariocas, então em sua formação original: Ismael Neto, Severino Filho, Badeco, Quartera e Valdir. Todos eles também demonstravam uma sensível influência da música americana, mais elaborada e de certa forma mais elegante.Dick Farney, nome artístico de Farnésio Dutra da Silva, chegou a ser apelidado de "o Frank Sinatra brasileiro", tal a qualidade de sua voz. Logo após o lançamento de Copacabana, Dick, um apaixonado pela música americana, especialmente por Sinatra, Mel Tormé e Dick Haymes, embarcou para os Estados Unidos a fim de tentar a carreira por lá, cantando também em inglês. Em 1948, o cantor voltou ao Brasil, mas sua carreira já estava irremediavelmente influenciada pela música americana. Nos anos seguintes ele gravaria sucessos como Marina e Alguém Como Tu. No verão de 1949, foi fundado na Rua Dr. Moura Brito, na Tijuca, o primeiro fã-clube do Brasil: o Sinatra-Farney Fã-Clube, do qual faziam parte nomes como Johnny Alf, João Donato e Paulo Moura. Lá, além de ouvir fervorosamente sucessos de seus dois ídolos, eles também começavam a "arranhar" os seus instrumentos. Voltando para a América, Dick tornou-se amigo dos mais conhecidos instrumentistas do jazz como Dave Brubeck, uma de suas principais influências no piano. Na década de 50, já amigo de diversos músicos americanos e com respeitado conceito entre eles, Dick Farney tocava no Peacock Alley, um requintado bar do hotel Waldorf Astoria, em Nova York. Como os freqüentadores do bar em sua maioria não falavam português, Dick apresentava a música Copacabana com uma versão em inglês. Na época, Ipanema ainda não era cantada em prosa e verso, sendo o bairro de Copacabana o verdadeiro cartão-postal do Rio de Janeiro, o que despertava a curiosidade, na letra em inglês, da canção que havia sido no Brasil um grande sucesso do cantor. Numa viagem ao Rio, em 1958, Dick deu um memorável concerto de jazz no auditório do jornal O Globo, apresentando-se com o baixista Xu Viana e o baterista Rubinho. Entre os temas de jazz, tocou sua versão de Copacabana com a letra em português e inglês, o que foi o sucesso da noite. O concerto foi gravado ao vivo e virou um LP no qual curiosamente a faixa Copacabana não se encontra. Dick Farney foi um dos primeiros cantores a procurar uma nova maneira de interpretar o samba. "Por que não existe um samba que a gente possa cantarolar no ouvido da namorada?", perguntava ele. Logo em seguida, uma turma de adolescentes do Flamengo resolveu criar o Dick Haymes-Lúcio Fan Club, para homenagear o fundador do grupo Namorados da Lua. Lúcio Ciribelli Alves, nascido em Cataguases, Minas Gerais, também era um amante da música americana, principalmente do jazz, que começou a ouvir ainda criança, na Tijuca. Estimulado pela família, Lúcio participou de um programa infantil na Rádio Mayrink Veiga, Bombonzinho. Deste, passou para o Picolino, na mesma rádio. De lá foi para a Rádio Nacional, onde, no programa Em Busca de Talentos, ganhou o primeiro prêmio. Daí em diante, Lúcio não parou mais de cantar. Fã de conjuntos vocais como Pied Pipers, Moderneer's e Starlighter's, aos 14 anos fundou o grupo Namorados da Lua, do qual era crooner, violonista e arranjador. Com o grupo vocal, inscreveu-se no programa de calouros de Ary Barroso, conseguindo o primeiro lugar. A partir daí, os Namorados gravaram mais de 40 discos em 78 rotações e apresentaram-se em cinemas e cassinos durante alguns anos. Em 1947, Lúcio foi convidado para integrar, em Cuba, o grupo Anjos do Inferno. De lá, com o grupo, foi para os Estados Unidos, onde, assim como Dick Farney, também muito aprendeu. Logo Carmen Miranda convidava os Anjos para acompanhá-la. Lúcio, no entanto, preferiu abandonar o grupo e voltar para o Brasil, encantando seus fãs com sucessos como Foi a Noite, De Conversa em Conversa e Sábado em Copacabana. Apesar das inovações na área de interpretação, trazidas principalmente das experiências de Lúcio Alves e Dick Farney no exterior, no início dos anos 50, as músicas consideradas modernas eram do tipo dor de cotovelo, embora com as harmonias já mais trabalhadas, como em Ninguém Me Ama, do lendário jornalista Antonio Maria. Muito ligada à natureza exuberante do Rio de Janeiro e à excelente música que se produzia na América e chegava através de discos e programas de rádio, como o notável Em Tempo de Jazz, apresentado por Paulo Santos na Rádio JB, a nova geração, alegre e irreverente, criada nas areias limpas das praias de Copacabana e Ipanema e sedenta por novidades, queria retratar sua própria experiência, seus sonhos e estilo de vida. Naquela época, as boas famílias consideravam cantar e tocar violão atividades menores e desestimulavam qualquer tipo de iniciativa de seus filhos neste sentido. Roberto Menescal, filho de uma tradicional família de arquitetos, lembra que, quando começou tentar profissionalizar-se, foi tocar com seu conjunto num baile ao qual seus irmãos mais velhos também compareceram como convidados. Depois de muita dança, chegou a hora do jantar: os convidados foram para as mesas e os músicos, inclusive Menescal, recolheram-se à cozinha, que era o lugar reservado para eles. "Foi um escândalo na família", recorda Menescal. Os rapazes normalmente eram direcionados a seguir carreiras como direito, engenharia ou arquitetura. As garotas podiam até tocar violão, enquanto esperavam um marido adequado. Mas os pais de Nara Leão, Jairo e Tinoca, eram uma exceção. Eles recebiam com prazer os amigos da filha para reuniões musicais em que se trocavam acordes e idéias, tudo regado a muito refrigerante e sucos de frutas. O apartamento em que moravam, na Avenida Atlântica, entrou para a História como o principal reduto da nova turma da Bossa Nova. Nara, que tinha 12 anos em 1954, aprendia violão com um professor chamado Patrício Teixeira. Roberto Menescal, seu amigo da turminha da rua, bicava as aulas, já que sua família não via com maior interesse suas tendências para a música. "A Nara era uma cabeça muito mais adiantada do que a gente", conta Menescal. E logo logo toda a turma começou a se interessar por música. Nas famosas vitrolas Philips, escutavam juntos discos como Julie Is Her Name, da cantora americana Julie London (cuja maior atração era o violonista Barney Kessel), o violonista mexicano Arturo Castro, o trompetista americano Chet Baker, cujo estilo cool de cantar era muito inspirador, e os pianistas George Shearing. Errol Garner e André Prévin. Outro programa imperdível para eles era assistir aos musicais da Metro. Menescal lembra o dia em que foi assistir a Cantando na Chuva, com Nara. "Quando saímos do cinema estava chovendo, e foi a glória. Envolvido pelo clima e pela música do filme, estava em Copacabana me sentindo o próprio Gene Kelly e a Nara, a Debbie Reynolds". Um episódio engraçado envolvendo o cinema Metro aconteceu com Menescal. Na época, os carros era um sonho quase inatingível para muitos adolescentes, principalmente os carros conversíveis. Um amigo de Menescal, Gustavo, comprou um Studebaker branco, com rodas cromadas e capota conversível azul-marinho, automática. Menescal, que já tocava um violãozinho, teve a idéia de irem os dois com carro e violão para a porta do Metro, a fim de esperar a saída da sessão das quatro e impressionar as garotas. Estava tudo planejado: eles ficariam parados na porta do cinema, bem à vontade, como quem não quer nada. Assim que se abrissem as portas, Gustavo apertaria o botão da capota, que se abriria lentamente mostrando os dois com o violão no banco de trás. Seria difícil para qualquer garota resistir a tal espetáculo. E lá se foram os dois. Tudo teria corrido muito bem não fosse o fato de o violão ter sido deixado na parte traseira, perto do porta-malas do carro. Na hora H, Gustavo apertou o botão e, conforme a capota foi baixando, também foi esmagando lentamente o instrumento. Eles ainda tentaram impedir a catástrofe, mas era tarde demais: todo mundo realmente parou, mas para olhar o violão sendo destruído. "Foi a maior vergonha", lembra Menescal. Carlos Lyra também morava em Copacabana, na Rua Bolívar, e começou a tocar violão aos 19 anos, por causa de uma perna quebrada quando servia no Exército. Sua mãe, com pena dos quatro meses de imobilidade receitados pelos médicos, resolveu presenteá-lo com um violão. Carlinhos começou a estudar com o método de Paraguassu e, mais tarde, quando saiu do Exército, teve aulas de violão clássico com um sargento da Aeronáutica chamado José Paiva. "Foi ele quem me ensinou a fazer arpejos, escalas e a tocar com uma postura correta, muito necessária na Bossa Nova", conta o compositor. Quando entrou para o Colégio Mallet Soares, Carlos Lyra conheceu Roberto Menescal e Luís Carlos Vinhas e com eles formou um trio estranhíssimo: dois violões e um piano. Mas ainda era tudo levado na brincadeira. O colégio Mallet Soares era a escola certa para eles: até os professores tocavam violão e alguns chegavam a estimular os alunos a matar aula para fazer um som. "Tínhamos um professor chamado César que tocava violão muito bem, e saía com a gente para tocar", conta Lyra. Foi no Mallet Soares que ele começou a compor. Maria Ninguém, clássico da Bossa Nova, foi criada durante as aulas de Francês de dona Iolanda. Além das reuniões na casa de Nara Leão, a turma também freqüentava os bares e boates onde se apresentavam Dick Farney, Lúcia Alves, Johnny Alf, Tito Madi, João Donato e Dolores Duran. "Eles foram os precursores da Bossa Nova, prepararam o terreno para a gente" reconhece Lyra. No meio da década de 50, algumas casas noturnas eram o esconderijo da boa música. Num pequeno barzinho numa rua atrás do cinema Rian, chamado Tudo Azul (pela cor dominante de sua decoração interior), Tom Jobim era o pianista efetivo, e figuras conhecidas da noite do Rio não deixavam de aparecer por lá. Naquele local, Rubem Braga fez a célebre apresentação de Vinícius de Moraes a Lila Bôscoli, com a famosa introdução: "Vinícius de Moraes, apresento-lhe Lila Bôscoli. Lila Bôscoli, apresento-lhe Vinícius de Moraes. E seja o que Deus quiser". E foi. Os dois acabaram se casando.
(Continua em: A história da Bossa Nova - Parte 2).Fonte: Revista Caras - Edição Especial de Junho de 1996.
Boa leituta - Namaste.