"Topete era o que não faltava a
Sérgio Mendes em novembro de 1962. Com apenas 21 anos, ele já tinha gravado um disco e despontava como menino prodígio por tocar jazz e bossa nova de modo bem particular, marcado pela versatilidade. Pianista talentoso e inventivo, ele teria viajado naquele mês de joelhos e com um terço na mão - por causa do medo que tinha de avião - para se apresentar no
Carnegie Hall,
Nova York, em homenagem à bossa nova. Tocaria ao lado dos grandes nomes do movimento brasileiro:
João Gilberto,
Tom Jobim,
Vinícius de Moraes e outros. Ao se reunir com os músicos e o organizador do evento,
Sidney Frey, Sérgio não se intimidou e anunciou logo: ou ele e seu abririam ou fechariam o show e não acompanhariam ninguém. O show foi pontuado por gafes, mas o grupo de Sérgio ficou com a abertura e fez bonito. Tanto que levou o saxofonista
sexteto Bossa Rio Cannonball Adderley a convidá-los para participar do seu disco
Cannonball’s Bossa Nova. Dessa experiência resultaria também, pouco depois, um dos discos mais importantes da música brasileira, Você Ainda não Ouviu Nada! Com arranjos de
Antônio Carlos Jobim e
Moacir Santos, o título do album soava pretensioso. Era, porém, a síntese de uma obra marcante e ainda não devidamente contextualizada, que destacou a efervescência musical de Copacabana no começo de 1960. Naquele momento, a música brasileira dava continuidade a um processo de transformação iniciado seis anos antes, com suas casas noturnas e clubes de jazz. Quase quatro décadas depois, o disco de
Sérgio Mendes e
Bossa Rio sai pela primeira vez no formato CD, numa luxuosa edição da Dubas que inclui sobrecapa cartonada e encarte bilíngüe com a biografia de todos os músicos do sexteto. Trata-se de uma obra básica no instrumental da bossa nova. Na contracapa,
Arino DeMattos Filho o anunciou como o "samba de sempre, mas um samba novo também". São dez faixas, quatro delas clássicos de Tom Jobim em parceria com
Vinícius de Moraes ou
Newton Mendonça:
Ela é Carioca,
Desafinado,
Corcovado e
Garota de Ipanema. A escolha do repertório não foi aleatória. Ao optar por grandes sucessos, Sérgio e sua turma queriam justamente mostrar a nova roupagem que queriam dar, com ênfase para os instrumentos de sopro - saxofone, clarinete e trombone. "
A gente representava o lado mais apimentado da bossa nova, enquanto os outros faziam algo mais doce, minimalista, de bandinha", recorda o instrumentista, em entrevista a este jornal, de Los Angeles, por telefone. "
Eu sempre gostei do lado instrumental do movimento e expressamos isso no disco." Misto de samba orquestrado com jazz,
Você Ainda não Ouviu Nada! parece brincadeira de tocar música, tamanha a espontaneidade e o entrosamento dos solos de sopro e de piano. Desafinado e Ela é Carioca, por exemplo, trazem introduções insuperáveis que revelam todo o seu potencial melódico em versão inesquecível. O álbum, na verdade, foi um casamento raro e ideal de músicos, arranjadores e canções. Daí a sonoridade especial do disco, que sobrevive 40 anos depois, com surpreendente contemporaneidade. O instrumentista levou cinco meses entre reunir músicos, fazer os arranjos e gravar. O sexteto era formado por
Sérgio, Tião Neto, conhecido contrabaixista;
Edison Machado, baterista e criador do "
samba de prato" e da batida no aro das caixas; os trombonistas
Raul de Souza e
Edson Maciel; o clarinetista argentino
Hector Bisignani, (Costita para os íntimos) e o saxofonista
Aurino Ferreira. Segundo Sérgio, o papel de Jobim nos arranjos foi muito importante. "
Quando ouviu o grupo pela primeira vez, ele ficou bastante impressionado com a sonoridade. Comecei a freqüentar sua casa e passamos a fazer os arranjos juntos." No caso de Moacir, ele havia sido seu professor e aceitara o convite para participar. Sérgio lembra que o disco foi pensado para não parecer com uma jam session - na qual diversos instrumentistas improvisam em seus instrumentos. "
Nas faixas, todo mundo tinha seu solinho, mas diferentes do jazz, marcado por solos longos." De acordo com o instrumentista, ele também procurou restringir as versões a pequenos solos para não ficar chato, sem improviso ou malabarismos. "
Cada um dá o seu pequeno recado, mas que é importante no conjunto", ele justifica. Em todas as faixas, porém, predomina o uso de dois trombones. Seria, então, um disco de samba-jazz? Sérgio diz que nunca o definiu assim. Ele admite que o jazz estava muito presente - com ênfase para o virtuosismo de
Edson Machado -, mas o fundamental era mesmo o samba. O jazz entrou apenas na parte do improviso. Em texto de 1964,
Tom Jobim recordou a gravação de Você Ainda não Ouviu Nada! e seus primeiros contatos com a musicalidade de Sérgio Mendes. Jobim contou que passou a admirá-lo como um músico extraordinário por ser, ao mesmo tempo, intuitivo e estudioso de música. "
Coisa rara, pois, geralmente, os intuitivos ficam apenas intuitivos e os estudiosos seguem estudiosos." O maestro descreveu a produção do LP como produto de mil noites sem dormir, café e cigarros. "
Não sou profeta, mas creio que este disco, produto de muito trabalho e amor, abre novos caminhos no panorama da nossa música." Ao fazer uma obra marcante com apenas 23 anos, Sérgio Mendes se consagrava como um talento precoce para um gênero de música em evidência, com aceitação internacional como nunca acontecera em relação ao Brasil. Para ele, em particular, tinha o sentido da superação de quem teve um infância difícil, marcada por limitações de saúde. Filho de médico, natural de Niterói, Sérgio se viu obrigado a viver com um colete de gesso por causa de uma escoliose. A doença não o atrapalhou em seu aprendizado de piano. Fã de
Stan Kenton e do pianista
Horace Silver, estudou com
Moacir Santos e trocou o clássico pelo jazz. Sobre Sérgio Mendes,
Ruy Castro recorda em seu livro
Chega de Saudade que contava-se, a família lhe raspava a cabeça quando tirava nota vermelha. Seu pai o educou com dinheiro controlado e como a mesada era curta, montou um trio com o amigo
Tião Neto, da mesma cidade, que tocava contrabaixo. O terceiro membro, um baterista, era rotativo. No começo os três animavam bailes com jazz, um ritmo que não costuma despertar interesse dos dançantes. Valsa mesmo só sabiam
Lover, de
Rodgers e
Hart. Mas seu talento de pianista se sobressaiu. Em 1960, começou a participar de canjas de bossa nova e jazz nas matinês de domingo no
Little Club, considerado ponto de estréia para jovens e amadores. No Beco das Garrafas, ponto de concentração de bares que tocavam bossa nova, Sérgio montou um sexteto formado por talentos que se destacariam depois:
Paulo Moura (sax-alto),
Pedro Paulo (trompete),
Durval Ferreira (guitarra),
Otávio Bailly (contrabaixo) e
Dom Um (bateria). Muitos outros grupos seriam formados por ele depois, inclusive três quartetos, num rápido processo de profissionalização que depois o destacaria internacionalmente como híbrido de jazz e música latina. Ambicioso e bem articulado, Sérgio tinha visão internacional e apostou em seu potencial quando se juntou aos maiores nomes da
Bossa Nova na tumultuada apresentação no
Carnegie Hall, em 1962, no show que serviria de diáspora para o movimento.
Sua aposta no mercado estrangeiro ganhou força no ano seguinte, após o lançamento de Você Ainda não Ouviu Nada! Durante 1963, o Bossa Rio excursionaria pelo Japão e França, agora como trio, com a participação de Nara Leão. A viagem foi patrocinada pela
Rhodia. Mas a grande chance para redirecionar a carreira de
Sérgio Mendes veio no ano seguinte, quando o Itamarati o convidou para organizar um grupo com o propósito de fazer uma turnê cultural pelo
México e
Estados Unidos. O instrumentista convidou
Jorge Benjor (violão e vocal);
Wanda Sá (vocal);
Rosinha de Valença (violão);
Tião Neto (contrabaixo); e
Chico Batera (bateria). Com o fim da excursão, ele convenceu alguns músicos a ficarem na América. Em maio do mesmo ano, gravaria
Bossa Nova York, com a participação de Jobim e grandes nomes do jazz como
Art Farmer,
Phil Woods e
Hubert Laws. De modo curioso,
Você Ainda não Ouviu Nada! ganhou o limbo da história da música brasileira. Até mesmo alguns dos livros mais profundos sobre a
Bossa Nova e
Tom Jobim não vão além da mera citação de seu título. Sua proposta também não teve continuidade e se tornou um momento único na discografia de
Sérgio Mendes, uma vez que trazia uma série de diferenças em relação ao seu primeiro disco, de 1960,
Dance Moderno, lançado pela Philips. Neste, predominava o piano, embora já tivesse
Maciel no trombone. O repertório misturava música brasileira e americana: Oba-Lá-Lá (João Gilberto), Love For Sale (Cole Porter), Tristeza de Nós Dois (Maurício - Durval Ferreira - Bebeto), What is This Thing Called Love? (Cole Porter), Olhou Para Mim (Ed Lincoln - Silvio César) e Satin Doll (Duke Ellington), entre outras. O disco com o
Bossa Rio, assim, deixou uma expectativa que não se cumpriu. Seu autor se tornaria um dos músicos brasileiros mais celebrados no exterior nas décadas seguintes. Nos EUA, Sérgio formou o conjunto
Brazil 66 que gravou discos e fez turnês com muito sucesso. O álbum
Herb Alpert Presents Sergio Mendes & Brazil 66 ultrapassaria a marca de um milhão de cópias, com o sucesso
Mas Que Nada, de
Jorge Benjor - a música chegou aos primeiros lugares das paradas de sucessos norte-americanas. Depois de tocar na Casa Branca, em 1967, Sérgio gravou vários discos, individuais ou com o conjuntos de conceituados músicos brasileiros que montou em diversas ocasiões. Sempre com o feeling de misturar ou combinar bossa nova, jazz e ritmos brasileiros populares. Em 1993 ganhou o prêmio Grammy na categoria World Music.. Continua a ser mais conhecido no exterior do que no Brasil. Ironicamente, seu lendário disco continua com seu título a provocar:
Você Ainda não Ouviu Nada! Quem não o conhece, não faz a menor idéia do que está perdendo". Fonte: Gonçalo Junior - Gazeta Mercantil em 16-08-2002.
que participou de filmes de mais de 100 milhões de dólares de bilheteria foi carpinteiro de
.
Boa audição - Namastê.