Nos dias
18 e
19 de
março de
1963, dez pessoas - oito homens e duas mulheres - reuniram-se no
A&R, um estúdio de gravação na Rua 48 Oeste quase esquina com a Sexta Avenida, em
Nova York, e criaram o álbum - LP, como então se dizia - que para muitos é o maior da bossa nova em todos os tempos. Ou o maior LP de bossa nova gravado fora do Brasil. Claro que enquanto o estavam gravando, eles não imaginavam o tamanho da façanha e nem que o disco seria um divisor de águas na vida de todos os envolvidos. Alguns talvez apenas desconfiassem disso. Esses homens e mulheres eram o sax tenor americano
Stan Getz, 36 anos recém-feitos, muito admirado por seu lirismo ao instrumento - e nem tanto, no mundo do jazz,por seu caráter ou falta; o pianista e compositor brasileiro
Antonio Carlos Jobim, também 36 feitos havia pouco e só então perdendo a timidez que o caracterizava; o violonista e cantor
João Gilberto, 32, tido por unanimidade como o criador e principal nome da bossa nova; o contrabaixista
Tião Neto, 32, com sua marcação firme e o som poderoso e redondo; e o baterista
Milton Banana, às vésperas dos 28 anos e tão importante para a bateria da bossa nova quanto
João Gilberto para o violão. As duas mulheres eram a bela
Astrud Gilberto, carioca nascida na
Bahia que faria 23 anos dali a dez dias e casada com
João Gilberto, e
Monica Getz, esposa de Stan e responsável por uma grande façanha poucos dias antes: resgatar
João Gilberto de seu quarto no já provecto
hotel Diplomat, cinco quarteirões abaixo na Rua 43 Oeste, onde o cantor se enfiara e convencê-lo diariamente a trocar o pijama pelo terno e ir com ela para o anexo do
Carnegie Hall, onde se realizavam os ensaios para o disco. Os outros três homens no
A&R eram o engenheiro de gravação
Phil Ramone, 29 anos dono do estúdio e em pouco tempo o maior nome do planeta em sua especialidade - no ano anterior, Ramone já demonstrara seu senso de oportunidade ao gravar
Marilyn Monroe cantando "Parabéns pra Você" para o presidente
John Kennedy no
Madison Square Garden; o engenheiro de som
Val Valentin, da mesma idade e, no futuro, tão prestigiado quanto Ramone; e o produtor do disco C
reed Taylor, da Verve Records, também muito jovem nos seus 33 anos e já merecedor da adoração universal dos jazzistas por ter criado três anos antes o selo
Impulse!. E, com este, temos os dez ali presentes ou 11, se contarmos um amigo comum de Jobim e Creed - o fotógrafo americano
David Drew Zingg o mais velho no recinto - 40 anos - já com várias passagens pelo
Brasil, onde viria morar definitivamente em 1965 e grande fã da bossa nova. Zingg não podia deixar de estar ali dentro do estúdio com sua Nikon porque fora quem apresentara Creed a Jobim e aos outros. Aliás seria a ele que Tom um dia no Rio diria sua célebre frase: "
David, o Brasil não é para principiantes".
Getz/Gilberto seria gravado na seqüência do já então polêmico concerto de bossa nova no
Carnegie Hall, que acontecera havia menos de quatro meses em novembro de 1962. Jobim, João Gilberto e Milton Banana eram dos poucos músicos brasileiros que tinham ido a
Nova York para o concerto e resolvido continuar por lá enfrentando o frio, a solidão, saudade do Rio e a falta do feijão.
Tião Neto chegara pouco depois do concerto com o
Bossa Três, que ele formava com o pianista
Luiz Carlos Vinhas e o baterista
Edison Machado - os três iriam se apresentar no programa de TV de
Ed Sullivan. Todos os outros que haviam estado no
Carnegie Hall -
Sergio Mendes,
Carlos Lyra,
Roberto Menescal,
Chico "
Fim de Noite",
Agostinho dos Santos,
Oscar Castro Neves, a cantora
Ana Lucia - já tinham voltado para o
Brasil e estavam sendo chamados a se explicar sobre o "fracasso" do concerto. Mas para Tom e João e também para Luiz Bonfá que igualmente decidira ficar em
Nova York, não tinha havido fracasso. O evento podia ter sido um primor de desorganização no palco mas a música contida nele dera o seu recado. E a quantidade de jazzistas interessados no que eles estavam fazendo - o sax barítono
Gerry Mulligan, os pianistas
Bill Evans e
Lalo Schifrin, os trompetistas
Miles Davis e
Dizzy Gillespie, o arranjador
Quincy Jones - demonstrava que não era hora de voltar. Além disso
Sidney Frey, dono da gravadora
Audio Fidelity e produtor do concerto ainda não lhes pagara um centavo pelo
Carnegie Hall. Desde a chegada Tom e João estavam se mantendo em
Nova York com seu próprio dinheiro e agora, tinham mandado buscar as esposas:
Tereza, esposa de Tom e
Astrud. Se voltassem para o Rio aí é que o gringo lhes daria o beiço de vez. Enquanto
Tereza não chegava, Tom ficou aos cuidados de
Gerry Mulligan e do letrista
Gene Lees, autor da versão em inglês para "Desafinado" e "Corcovado". Os dois americanos o adotaram e andavam com ele dia e noite alternando entre os botequins
Jim and Andy's, na Rua 47 e
Charlie's na Rua 52, ambos Oeste. Além da musicalidade absoluta do brasileiro duas coisas atordoavam Lees e Mulligan quanto a Tom: sua capacidade cúbica - era capaz de tomar o triplo de uísque que eles - e a velocidade com que estava aprendendo inglês. Mas Tom tinha seus próprios motivos para freqüentar esses botequins: ficara íntimo dos cozinheiros os quais na maioria eram porto-riquenhos. Eles não se passavam pela batata que serviam aos fregueses e faziam para si próprios um farto arroz com feijão com o qual Tom também se refestelava na cozinha. Com a chegada de Tereza Tom pôde parar de comer na rua mas as despesas dobraram e ele teve de passar a sacar dos adiantamentos que sua editora americana a
BMI, lhe estava fazendo por conta das vendas de "Desafinado" e "Samba de Uma Nota Só", ambos já com várias gravações nos
Estados Unidos.
Stan Getz por sua vez deixara para trás a pindaíba em que vivia até bem pouco tempo - sua carreira tinha ido para o buraco afogada em álcool e drogas. Naquele mês de março ele já estava comprando suas roupas na
Brooks Brothers com a montanha de dinheiro que a bossa nova despejava na sua conta. Seu LP com
Charlie Byrd -
Jazz Samba, gravado um ano antes e também produzido por
Creed Taylor, entrara na lista de mais vendidos da revista
Billboard e chegara espantosamente ao 1º lugar (ficaria ao todo 70 semanas na lista) - sendo que o 45 rpm de "Desafinado" extraído do LP já vendera mais de 1 milhão de cópias. Nunca um disco de jazz sonhara em atingir tais marcas. Zonzo com o sucesso
Creed Taylor resolveu investir na bossa nova e produzir novos discos do gênero com
Stan Getz. O LP seguinte de Stan,
Big Band Bossa Nova gravado poucos meses depois de
Jazz Samba em parceria com o vibrafonista
Gary McFarland e grande orquestra chegaria ao 13º lugar e ficaria 23 semanas na lista da
Billboard. Era bom mas só tinha bossa nova no título. Um terceiro LP -
Jazz Samba Encore!, com Getz finalmente dividindo o microfone com um músico brasileiro -
Luiz Bonfá e gravado logo depois do
Carnegie Hall era muito melhor mas seu topo na lista seria um 88º lugar em 11 semanas. Nem o ponto de exclamação do título ajudou. Mesmo assim, eram grandes colocações sabendo-se que esses discos não estavam correndo numa raia à parte mas lutando contra os pesos pesados da música americana da época:
Elvis Presley,
Bobby Darin,
Pat Boone,
Henry Mancini,
Lawrence Welk e dezenas de outros. E se pareciam decepcionantes era porque o acachapante fenômeno de
Jazz Samba os deixara mal-acostumados. Só então Creed e Stan se deram conta de que nunca mais repetiriam aquele sucesso e que passada a primeira onda a bossa nova poderia sobreviver comercialmente mas restrita ao mundinho do jazz. O disco seguinte de Stan que eles já tinham acertado por contrato desde janeiro seria com
João Gilberto e
Jobim e não havia esperança de que seu destino fosse melhor do que os anteriores. Nunca duas pessoas se enganaram tanto. Quem poderia adivinhar que aquele LP, sim, é que seria o começo de tudo?
Getz/Gilberto, naturalmente, tornou-se o clássico dos clássicos e até hoje botá-lo para tocar é uma experiência insuperável. Quem consegue acreditar que esse disco já existe há 45 anos? E como convencer os mais jovens de que foi gravado em apenas dois dias e ao velho estilo? Ou seja: nada dessa história de gravar primeiro as "bases" - piano, contrabaixo e bateria - para depois o cantor "botar a voz" ou o saxofonista solar por cima. Eram todos ao mesmo tempo no estúdio, tocando juntos - se um errasse tinham de parar e começar de novo. Mas ninguém ali era de errar.
Milton Banana fora o baterista nos principais eventos da bossa nova até então - e não por acaso todos ligados a
João Gilberto: as noitadas da boate Plaza em Copacabana em 1957 onde se ouviu ao vivo a batida da bossa nova pela primeira vez; a gravação do single "
Chega de Saudade", por João, na
Odeon em 1958, do LP de mesmo nome em 1959 e o show
O Encontro no restaurante
Bon Gourmet também em
Copacabana que reunira Gilberto, Jobim, Vinicius de Moraes e Os Cariocas em 1962. Poucos meses depois no
Carnegie Hall ele acompanhara
João Gilberto em sua interpretação ultraminimalista de "
Outra Vez" de Tom - apenas a voz e o violão de João e suas escovinhas na vastidão daquele palco - deixando a platéia de
Nova York hipnotizada. A participação de Banana no disco com Getz fora uma imposição de
Tom Jobim e
João Gilberto junto a
Creed Taylor. Por este o baterista seria americano. Aliás na gravação de
Jazz Samba um ano antes Getz usara dois bateristas americanos -
Buddy Deppenschmidt e
Bill Reichenbach para tentar simular a leveza brasileira - sem conseguir. Mas já nos ensaios para
Getz/Gilberto assim que Banana tirou suas baquetas do estojo e roçou-as de leve nos couros Getz viu com quem estava lidando: com o primeiro e maior baterista da bossa nova. O contrabaixista
Tião Neto por sua vez tinha pouco mais de três anos como profissional mas já era milionário de vôo nas boates do Beco das Garrafas em Copacabana. Todos o disputavam como acompanhante. Além disso, com seu cavanhaque e o porte de príncipe por trás do contrabaixo ele dava um ar quase intelectual a todas as formações de que participava - imponente como
Eddie Safranski, contrabaixista de
Stan Kenton ou hierático como
Percy Heath, do
Modern Jazz Quartet. E o que dizer de Tom Jobim? Era o pianista e diretor musical da gravação além de autor de seis das oito faixas que eles pretendiam gravar: "Garota de Ipanema", "Desafinado", "Corcovado", "Só Danço Samba", "O Grande Amor" e "Vivo Sonhando" (as outras duas, "Doralice", de
Dorival Caymmi e
Antonio Almeida e "Pra Machucar Meu Coração", de
Ary Barroso, eram duas velhas jóias brasileiras que só almas apuradas como a de João e Tom saberiam desencavar). Quanto a
Stan Getz conseguira finalmente dominar a emissão controlada e relax quase sem vibrato que para Tom seria a ideal para fazer o contraponto à maciez da voz e à flexibilidade do violão de
João Gilberto. Em tese, aquela tinha tudo para ser uma gravação tranqüila - não havia motivo para problemas. Mas o que aconteceu foi que de relax a gravação de
Getz/Gilberto teve pouco ou nada.
João Gilberto não se satisfazia com a emissão de Getz, que achava muito enfática para a delicadeza da bossa nova. Por isso, a todo instante interrompia a gravação, para obrigá-lo a começar de novo. Getz não entendia e João dizia entre dentes para Jobim, como quem mastigasse as sílabas:
- "Tom, diga a esse gringo que ele é muito burro."
O americano perguntava a Tom o que João dissera e Tom botava panos quentes:
- "Ele está dizendo que é uma honra gravar com você."
- "Engraçado", resmungava Getz. "Pelo tom de voz não parece ser isso que ele disse."
Getz era famoso por seu gênio estourado e por ser cruel com os colegas. Não se sabe como se segurou. A única explicação era a de que, depois de tantos atropelos em sua carreira, ele estava vendo na bossa nova uma possibilidade de redenção - e, para isso engoliria todos os sapos que
João Gilberto lhe jogasse ao colo. Custou mas João conseguiu que Stan soasse ao sax tenor quase como se sussurrasse - pelo menos durante a gravação. Sim porque,meses depois, na mixagem sem a presença dos brasileiros Getz aumentou o volume de seus solos, principalmente nas entradas, conferindo-lhes um ataque que
João Gilberto nunca teria aprovado. Com todas as idas e vindas e as inúmeras interrupções, inclusive para escapadas ao
Jim and Andy's, bem ao lado as oito faixas de
Getz/Gilberto - 34 minutos de inexcedível beleza - foram gravadas por igual durante os dois dias, quatro de cada vez, sendo "Garota de Ipanema" a última do primeiro dia. E então deu-se aquilo que por muito tempo se constituiu numa das lendas da bossa nova: a fábula da esposa e dona-de-casa, jovem e despretensiosa que casualmente no estúdio foi convidada a gravar uma pequena participação e dali disparou para tornar-se um fenômeno de vendas no mercado americano -
Astrud Gilberto naturalmente. Acontece que Astrud não estava por acaso no estúdio naquele dia e nem era tão despretensiosa. Ao contrário, sempre quis ser cantora e desde que se casara com
João Gilberto em 1960 ele a preparara para isso. (Como será ter
João Gilberto como professor particular de canto?) Astrud até já se apresentara em público no Rio: na famosa
Noite do Amor, do Sorriso e da Flor, o grande show de bossa nova no pátio da Faculdade de Arquitetura da Praia Vermelha, em 20 de maio de 1960 - por sinal o último show amador da bossa nova porque,a partir dali todos os seus participantes se profissionalizariam. Com João acompanhando-a ao violão e aos vocalises, Astrud cantou "Lamento" e "Brigas Nunca Mais", ambas de Tom e Vinicius para mais de 2 mil pessoas. Não empolgou mas também não fez feio - e nem João permitiria que ela se apresentasse se não estivesse minimamente no ponto. Astrud falava inglês e era com essa capacidade que tinha ido para
Nova York - para ajudar João em seus compromissos e tratativas comerciais com empresários e agentes, já que as únicas palavras que ele conhecia eram os títulos de algumas canções americanas, como "
All of Me" ou "
Day by Day". Durante um dos ensaios em que se repassava a interpretação de "Garota de Ipanema", João a pedido de Astrud,sugeriu a Getz que ela lhe cantasse a versão em inglês que o letrista
Norman Gimbell fizera para o samba. O curioso é que Astrud foi a intérprete de João quando este sugeriu ao americano a idéia de testá-la. Stan concordou sem muito interesse mas
Creed Taylor viu naquilo uma boa idéia - se desse certo, uma ou duas canções em inglês aumentariam as chances comerciais do disco. E, então Astrud cantou "
The Girl from Ipanema" e foi aprovada. Ali mesmo Tom sugeriu que ela também cantasse "Corcovado" que seu amigo
Gene Lees transformara em "
Quiet Nights of Quiet Stars". No futuro depois do sucesso estrondoso de Astrud,
Stan Getz insistiria em dizer que João e Jobim não a queriam no disco e que não fosse por ele ela nunca teria sido "descoberta". "
Corcovado" foi a primeira faixa a ser gravada no segundo dia e Astrud revelou-se muito mais segura do que em "
The Girl from Ipanema". Nesta por sinal ela comete um erro ao cantar o verso
"She looks straight ahead, not at he", em vez de
"... not at me". Mas quando
Creed Taylor percebeu era tarde porque o trabalho já fora encerrado - e uma época em que o instrumento de edição era a gilete, a gravação em apenas dois canais não permitia que se fizesse essa maquiagem. O próprio
Creed Taylor não se deu conta do ouro que tinha em mãos. Terminada a gravação pagou todo mundo engavetou a fita e foi tratar da produção de outros discos. Um deles em maio com o próprio
Tom Jobim tocando suas composições ao piano,
Antonio Carlos Jobim, the Composer of "Desafinado", Plays, com arranjos do maestro alemão - até então nada valorizado -
Claus Ogerman. Quando esse disco saiu, a revista
Down Beat sapecou-lhe a cotação máxima de cinco estrelas e seu crítico
Pete Welding lamentou que não tivesse mais estrelas para dar. Mas a glória ainda não estava se convertendo em dólares para Jobim e para faturar alguns trocados ele teve de submeter-se a tocar violão em discos dos outros. Um deles foi
Brazilian Mancini do pianista
Jack Wilson, só de composições de
Henry Mancini em ritmo de bossa nova. Para assegurar que o disco contivesse a desejada batida,
Tião Neto foi convocado ao contrabaixo e o baterista era outro carioca recém-chegado
Chico Batera. O curioso é que como era exclusivo da
Verve e seu nome não pudesse aparecer, Tom foi creditado na capa como "
Tony Brazil" - assim mesmo entre aspas todos sabendo que era ele. Vida dura. Seus outros companheiros do abandonado
Getz/Gilberto também foram tratar da vida no restante de 1963.
Stan Getz ainda gravou mais um LP de bossa nova este com o violonista
Laurindo de Almeida que
Creed Taylor também engavetou e dedicou-se a tocar exclusivamente jazz pelos 17 meses seguintes.
João Gilberto aceitou o convite do pianista
João Donato então morando na
Califórnia para irem fazer uma temporada em
Viareggio no sul da
Itália numa pequena boate chamada
Bussoloto. Com os dois Joões seguiram
Tião Neto e
Milton Banana (e só por isso Banana não tocou no disco de Tom sendo substituído pelo também excepcional
Edison Machado). E com eles foi também Astrud que ainda ninguém conhecia e que viajou no papel de simples esposa de João. O
Bussoloto era o privé de uma grande casa de shows à beira-mar, chamada
La Bussola onde a atração era o band leader
Bruno Martino tocando chachachás e
hully gullies para dançar. Mas Martino era também compositor - compusera um bolero intitulado "Estate" que
João Gilberto adorou de saída e incorporou a seu repertório logo nas primeiras noites. Aliás, falando nos documentos sonoros perdidos da bossa nova este foi um que nem chegou a existir:
João Gilberto,
João Donato,
Tião Neto e
Milton Banana lotaram durante três meses o
Bussoloto, noite após noite, dois shows por noite, certamente fazendo maravilhas - e nenhum desses shows foi gravado, nem mesmo por um amador equipado com um precário Geloso. O ano correu. Em julho Tom embarcou (de navio) para o Brasil. Na Itália, João e Astrud romperam e se separaram - João foi para Paris, Astrud voltou para o Rio. Em Paris, João conheceu uma estudante chamada
Miúcha e convidou-a para ir a
Nova York com ele para servir-lhe de secretária.
Miúcha aceitou. Em novembro,
Creed Taylor finalmente tirou
Getz/Gilberto da geladeira e começou a ouvi-lo para ver o que saía dali. E gostou do que ouviu. Quanto mais o ouvia mais gostava do disco e em particular das duas faixas com Astrud. A onda da bossa nova já passara nos
Estados Unidos - a dança que
Arthur Murray dono de uma famosa academia tentara inventar para ela fora um fiasco de público - e era utópico sonhar com um sucesso de vendas. Mas o que ele tinha a perder? Creed preparou o LP para soltá-lo na íntegra e para um single em 45 rpm com duas faixas, amputou "The Girl from Ipanema" e "Corcovado" das participações de
João Gilberto, conservando apenas os vocais de Astrud. Com isso cortou mais de dois minutos de cada faixa e as deixou com um tempo mais convidativo para que as rádios as tocassem. Incluiu o disco no suplemento "latino" da
Verve e, em fevereiro de 1964, disparou a primeira cópia do single para uma pequena estação simpática ao jazz, no estado de
Ohio. Dias depois recebeu um telefonema do programador: os ouvintes, siderados, não paravam de ligar para a estação perguntando o que era "aquilo". No Rio e no
Brasil, durante o ano de 1964, "
Garota de Ipanema" podia ser qualquer coisa, menos uma novidade. Todo mundo, exceto dom
Helder Câmara já a tinha gravado e em todos os formatos possíveis: cantor-solo, em dupla, trio de jazz, conjunto vocal, quarteto de cordas, grande ou pequena orquestra e arranjo sinfônico.
Pery Ribeiro fora o primeiríssimo, depois o
Tamba Trio e em seguida,
Claudette Soares. Mas ninguém no Rio esperava por aquela versão contendo
Stan Getz,
João Gilberto,
Tom Jobim,
Tião Neto,
Milton Banana - e uma doce voz feminina que já não era a de "
Astrudinha, mulher de João" como a chamava
Vinicius de Moraes mas, agora a da famosa
Astrud Gilberto. Ninguém esperava por aquilo - nem no Rio, nem no resto do mundo. Em poucos meses o single de "
The Girl from Ipanema" chegou ao 5º lugar na lista da
Billboard e permaneceu 11 semanas nela. Já o LP bateu num inacreditável 2º lugar e eternizou-se por 96 semanas na lista. E por que não chegou ao 1º? - perguntará você. Porque o 1º lugar semana após semana em todas as listas de 1964, pertenceu a algum LP dos
Beatles, dos vários que foram lançados naquele ano nos
Estados Unidos. Mas a
Getz/Gilberto coube uma honra que ninguém tira: a de ser o LP de jazz mais vendido de todos os tempos. Vendido e respeitado. Foi um terremoto, uma avalanche. Em poucos meses com seus rendimentos nesse disco,
Stan Getz comprou uma casa de 23 quartos em
Irvington (
NY), que pertencera a Frances, irmã de
George Gershwin.
João Gilberto faturou de saída 23 mil dólares, bom dinheiro então. E
Astrud Gilberto talvez a principal responsável pelo estouro do disco ganhou pela tabela estabelecida pelo Sindicato dos Músicos de
Nova York: 168 dólares por dois dias de trabalho - e mesmo assim,
Stan Getz achou demais. Ao saber que Getz resmungara pelo cachê pago a Astrud, seu amigo o também sax tenor
Zoot Sims, comentou no
Jim and Andy's: "
É bom saber que o sucesso não alterou Stan. Ele continua a ser o mesmo filho-da-puta de sempre." Com "
The Girl from Ipanema" tocando em todas as rádios, lojas de discos, máquinas automáticas, vitrolas domésticas e sistemas de som em 1964, seus criadores tiveram de voltar correndo para
Nova York.
Stan Getz foi o primeiro. Retomou o repertório da bossa nova e mandou chamar Astrud no Rio - e lá se foi com ela para uma longa temporada em
nightclubs dos
Estados Unidos e da
Inglaterra. De uma escala em
Nova York saiu um LP ao vivo -
Getz Au Go Go - que, sempre graças a Astrud, chegou à parada da
Billboard no dia 19 de dezembro, bateu no 24º lugar e permaneceu por 46 semanas. E esse foi apenas o começo da carreira de Astrud, que em 1965 ganhou um LP só para ela,
The Astrud Gilberto Album e cujos discos seguintes como
Beach Samba e
Look to the Rainbow, todos produzidos por
Creed Taylor a tornaram um sinônimo dos anos 1960 para os americanos. Tom também voltou para os
Estados Unidos para participar do primeiro LP de Astrud e para gravar uma série de grandes LPs dele mesmo, mas na
Warner, que o tirou da
Verve. E, a partir dali ninguém mais o segurou. Quanto a
João Gilberto que já estava por lá foi convidado por Getz a se apresentarem juntos no
Carnegie Hall em outubro de 1964, do que resultou um
Getz/Gilberto #2 ao vivo sem comparação com o primeiro. Em 1965 sem Stan mas acompanhado por gente de luxo como o pianista
Bill Evans ou o trompetista
Art Farmer, João saiu pela estrada apresentando-se em
Boston,
Washington,
Los Angeles e creia comparecendo aos shows como um bom menino e não se atrasando para nenhum. E tudo por causa de
Getz/Gilberto. De passagem foi também um LP que faturou cinco Grammys - um deles o de disco do ano e nada menos do que dois para
João Gilberto como cantor e como violonista. (João enfiou os troféus num armário em
Nova York e esqueceu. Tempos depois numa mudança vendeu o armário com os Grammys e tudo e nunca mais os viu.) Por causa desse LP,
Creed Taylor retomou seu repertório de bossa nova e além de Astrud, lançou vários outros brasileiros de enorme sucesso nos
Estados Unidos como o organista
Walter Wanderley, o percussionista
Airto Moreira, o próprio Tom (seus discos
Wave, Tide e
Stone Flower, que estão entre os melhores de sua carreira foram todos feitos para Creed) e principalmente,
Eumir Deodato, que vendeu milhões com seu surpreendente arranjo de baião eletrônico para "
Also Sprach Zarathustra", de
Richard Strauss e tema do filme
2001: Uma Odisséia no Espaço. Uma única e lamentável injustiça manchou a odisséia de
Getz/Gilberto: a ausência de
Tião Neto nos créditos do LP. Em seu emprego fixo na época, Tião era contrabaixista do
Bossa Três e este era contratado de
Sidney Frey, dono da gravadora
Audio Fidelity - logo Tião não podia aparecer entre os músicos do disco. (Poderia se a Verve tivesse concordado em pagar a Frey.) Com isso o contrabaixista creditado em
Getz/Gilberto ficou sendo
Tommy Williams, músico regular de Stan mas que nem sequer passou pela porta do estúdio enquanto Tião, lá dentro dava uma fabulosa sustentação aos outros músicos. A provar sua participação se não bastasse a palavra dos outros,há as fotos de
David Zingg e o contracheque da
Verve com o valor de seu cachê pelo trabalho: os mesmos 168 dólares de Astrud. Bem a seu estilo, Tião nunca disse uma palavra a respeito - foi nominalmente deixado de fora de um dos maiores discos de todos os tempos e só lhe restou a glória de viajar o mundo inteiro com os conjuntos de
Sergio Mendes e mais tarde o de Jobim. Por causa de
Getz/Gilberto a América adotou
João Gilberto,
Tom Jobim e
Astrud Gilberto, absorveu-os e tratou-os como se eles fossem seus. E por muito tempo, pareceu que eles eram mesmo. Entre os
Estados Unidos e o
México,
João Gilberto ficou 20 anos fora do Brasil. Tom ia e voltava, meses aqui e outros tantos por lá - numa dessas, gravou dois LPs com
Frank Sinatra - e assim foi até o fim, em 1994. E Astrud nunca mais voltou - só a passeio, e cada vez mais raramente. Mais tempo se passou e além de Tom, morreram Getz, Tião Neto, Milton Banana e David Zingg. "
Garota de Ipanema", a canção propriamente dita é que ficou imortal: tornou-se a primeira ou a segunda mais tocada do século XX, alternando-se com "
Yesterday", de
Lennon & McCartney. E
Getz/Gilberto que nunca saiu de catálogo, inscreveu-se num pequeno panteão de perfeições criadas pelo homem (e, no caso, uma mulher) à revelia e a despeito de si mesmo. Perfeições que,um dia,esse homem terá de fazer por merecer. Fonte:
Ruy Castro (Portal Brasileiros -
Edição 9, Abril/2008)
1. The Girl From Ipanema
2. Doralice
3. Para Machuchar Meu Coracao
4. Desafinado (Off Key)
5. Corcovado (Quiet Nights Of Quiet Stars)
6. So Danco Samba
7. O Grande Amor
8. Vivo Sonhando (Dreamer)