O jazz é uma forma de expressão musical do negro norte-americano que ironicamente deve muito de sua concepção à existência da escravatura. Não havia jazz na África e muito menos seria possível o surgimento dessa música nos EUA sem a participação essencial do negro. Uma polêmica que tem acompanhado a evolução jazzística através dos tempos – talvez a mais complexa – é justamente a que tenta determinar a origem dos elementos que o formaram. Muitas análises realizadas sem o devido embasamento musicológico e principalmente fundamentadas no arcaico princípio do europocentrismo acabaram por explicar esse fenômeno através de uma divisão de influências. Algo como: “o negro trouxe os ritmos da África e o branco contribuiu com a harmonia e a melodia européia”. Esta era uma solução bastante simplista que incorria numa erronia idealização do negro. Como se este, a partir da nova condição de escravo e vivendo numa outra sociedade fosse abandonar possivelmente sua cultura, substituindo-a pela cultura do dominador. É claro que essa discussão só poderia avançar a partir de um conhecimento mais profundo da África e sua cultura, o que nas primeiras décadas deste século ainda se mostrava incipiente. Mesmo que a lente defeituosa do europocentrismo fosse paulatinamente abandonada, nada seria possível sem um estudo mais marcadamente musicológico que deslocasse essa polêmica do estágio das meras suposições e opiniões pessoais para o campo da ciência. Um trabalho que definitivamente se inscreve nesse campo é “Early Jazz: Its Roots and Musical evelopment, New York, Oxford University – 1968, p. 62”, do músico e professor Gunther Schuller. Apoiando-se nas pesquisas do musicólogo inglês A. M. Jones no continente africano que serviram de base para uma apurada análise dos elementos que formam o jazz, Schuller conclui que a cultura negra africana constitui a base dessa expressão musical. “O estudo analítico mostra que todos os elementos musicais – ritmo, harmonia, melodia, timbre e as formas básicas do jazz – são essencialmente africanos em seus antecedentes e derivação. E por que haveria de ser de outro modo? Afinal as tradições de séculos que não são meros cultos artísticos, senão parte inseparável da vida diária e não abandonada tão facilmente. Houve aculturação, porém só no sentido de que o negro permitiu que elementos europeus se integrassem às suas tradições africanas. Anteriormente à década de 20 o negro tomou só aqueles ingredientes europeus que era necessário para a sobrevivência de sua própria música. Por isso pode-se dizer que dentro do amplo marco de tradição européia o negro americano foi capaz de conservar um núcleo significativo de sua tradição africana. E é esse núcleo o que tem feito do jazz a linguagem tão singularmente cativante que é”. Essa conclusão é muito importante porque atribui à cultura africana seu papel na construção do jazz. E mais ainda, porque indica a existencia de um “núcleo significativo” da tradição africana que seria o responsável pela singularidade dessa música. Se tal “núcleo” manteve o predomínio dos elementos musicais africanos na construção e evolução do jazz, não é descabido pensar que analogamente pelos menos alguns elementos componentes das representações tribais tenham se mantido no espetáculo jazzístico. Isto é também deve haver um núcleo de elementos estruturais das cerimoniais e representações religiosas africanas. Se o negro resistiu a abandonar os principais elementos construtivos de sua música, teria ele desprezado suas formas tradicionais de atuação e representação? Isso seria bastante contraditório em vista da grande integração existente entre as artes que compunham os rituais, cerimoniais e performances tribais, como o canto, a dança, a mímica, a indumentária, os relatos de estórias e naturalmente a música em si.
Fonte: O Jazz como Espetáculo – Carlos Calado, Ed. Perspectiva “Coleção debate”, p. 65-67.
Countless Blues - Freddie Green & Eddie Durham
Fonte: O Jazz como Espetáculo – Carlos Calado, Ed. Perspectiva “Coleção debate”, p. 65-67.
Countless Blues - Freddie Green & Eddie Durham
Um comentário:
Mais um belo post.
Abraço do falcão
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