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- "Tom, diga a esse gringo que ele é muito burro."
O americano perguntava a Tom o que João dissera e Tom botava panos quentes:
- "Ele está dizendo que é uma honra gravar com você."
- "Engraçado", resmungava Getz. "Pelo tom de voz não parece ser isso que ele disse."
Getz era famoso por seu gênio estourado e por ser cruel com os colegas. Não se sabe como se segurou. A única explicação era a de que, depois de tantos atropelos em sua carreira, ele estava vendo na bossa nova uma possibilidade de redenção - e, para isso engoliria todos os sapos que João Gilberto lhe jogasse ao colo. Custou mas João conseguiu que Stan soasse ao sax tenor quase como se sussurrasse - pelo menos durante a gravação. Sim porque,meses depois, na mixagem sem a presença dos brasileiros Getz aumentou o volume de seus solos, principalmente nas entradas, conferindo-lhes um ataque que João Gilberto nunca teria aprovado. Com todas as idas e vindas e as inúmeras interrupções, inclusive para escapadas ao Jim and Andy's, bem ao lado as oito faixas de Getz/Gilberto - 34 minutos de inexcedível beleza - foram gravadas por igual durante os dois dias, quatro de cada vez, sendo "Garota de Ipanema" a última do primeiro dia. E então deu-se aquilo que por muito tempo se constituiu numa das lendas da bossa nova: a fábula da esposa e dona-de-casa, jovem e despretensiosa que casualmente no estúdio foi convidada a gravar uma pequena participação e dali disparou para tornar-se um fenômeno de vendas no mercado americano - Astrud Gilberto naturalmente. Acontece que Astrud não estava por acaso no estúdio naquele dia e nem era tão despretensiosa. Ao contrário, sempre quis ser cantora e desde que se casara com João Gilberto em 1960 ele a preparara para isso. (Como será ter João Gilberto como professor particular de canto?) Astrud até já se apresentara em público no Rio: na famosa Noite do Amor, do Sorriso e da Flor, o grande show de bossa nova no pátio da Faculdade de Arquitetura da Praia Vermelha, em 20 de maio de 1960 - por sinal o último show amador da bossa nova porque,a partir dali todos os seus participantes se profissionalizariam. Com João acompanhando-a ao violão e aos vocalises, Astrud cantou "Lamento" e "Brigas Nunca Mais", ambas de Tom e Vinicius para mais de 2 mil pessoas. Não empolgou mas também não fez feio - e nem João permitiria que ela se apresentasse se não estivesse minimamente no ponto. Astrud falava inglês e era com essa capacidade que tinha ido para Nova York - para ajudar João em seus compromissos e tratativas comerciais com empresários e agentes, já que as únicas palavras que ele conhecia eram os títulos de algumas canções americanas, como "All of Me" ou "Day by Day". Durante um dos ensaios em que se repassava a interpretação de "Garota de Ipanema", João a pedido de Astrud,sugeriu a Getz que ela lhe cantasse a versão em inglês que o letrista Norman Gimbell fizera para o samba. O curioso é que Astrud foi a intérprete de João quando este sugeriu ao americano a idéia de testá-la. Stan concordou sem muito interesse mas Creed Taylor viu naquilo uma boa idéia - se desse certo, uma ou duas canções em inglês aumentariam as chances comerciais do disco. E, então Astrud cantou "The Girl from Ipanema" e foi aprovada. Ali mesmo Tom sugeriu que ela também cantasse "Corcovado" que seu amigo Gene Lees transformara em "Quiet Nights of Quiet Stars". No futuro depois do sucesso estrondoso de Astrud, Stan Getz insistiria em dizer que João e Jobim não a queriam no disco e que não fosse por ele ela nunca teria sido "descoberta". "Corcovado" foi a primeira faixa a ser gravada no segundo dia e Astrud revelou-se muito mais segura do que em "The Girl from Ipanema". Nesta por sinal ela comete um erro ao cantar o verso "She looks straight ahead, not at he", em vez de "... not at me". Mas quando Creed Taylor percebeu era tarde porque o trabalho já fora encerrado - e uma época em que o instrumento de edição era a gilete, a gravação em apenas dois canais não permitia que se fizesse essa maquiagem. O próprio Creed Taylor não se deu conta do ouro que tinha em mãos. Terminada a gravação pagou todo mundo engavetou a fita e foi tratar da produção de outros discos. Um deles em maio com o próprio Tom Jobim tocando suas composições ao piano, Antonio Carlos Jobim, the Composer of "Desafinado", Plays, com arranjos do maestro alemão - até então nada valorizado - Claus Ogerman. Quando esse disco saiu, a revista Down Beat sapecou-lhe a cotação máxima de cinco estrelas e seu crítico Pete Welding lamentou que não tivesse mais estrelas para dar. Mas a glória ainda não estava se convertendo em dólares para Jobim e para faturar alguns trocados ele teve de submeter-se a tocar violão em discos dos outros. Um deles foi Brazilian Mancini do pianista Jack Wilson, só de composições de Henry Mancini em ritmo de bossa nova. Para assegurar que o disco contivesse a desejada batida, Tião Neto foi convocado ao contrabaixo e o baterista era outro carioca recém-chegado Chico Batera. O curioso é que como era exclusivo da Verve e seu nome não pudesse aparecer, Tom foi creditado na capa como "Tony Brazil" - assim mesmo entre aspas todos sabendo que era ele. Vida dura. Seus outros companheiros do abandonado Getz/Gilberto também foram tratar da vida no restante de 1963. Stan Getz ainda gravou mais um LP de bossa nova este com o violonista Laurindo de Almeida que Creed Taylor também engavetou e dedicou-se a tocar exclusivamente jazz pelos 17 meses seguintes. João Gilberto aceitou o convite do pianista João Donato então morando na Califórnia para irem fazer uma temporada em Viareggio no sul da Itália numa pequena boate chamada Bussoloto. Com os dois Joões seguiram Tião Neto e Milton Banana (e só por isso Banana não tocou no disco de Tom sendo substituído pelo também excepcional Edison Machado). E com eles foi também Astrud que ainda ninguém conhecia e que viajou no papel de simples esposa de João. O Bussoloto era o privé de uma grande casa de shows à beira-mar, chamada La Bussola onde a atração era o band leader Bruno Martino tocando chachachás e hully gullies para dançar. Mas Martino era também compositor - compusera um bolero intitulado "Estate" que João Gilberto adorou de saída e incorporou a seu repertório logo nas primeiras noites. Aliás, falando nos documentos sonoros perdidos da bossa nova este foi um que nem chegou a existir: João Gilberto, João Donato, Tião Neto e Milton Banana lotaram durante três meses o Bussoloto, noite após noite, dois shows por noite, certamente fazendo maravilhas - e nenhum desses shows foi gravado, nem mesmo por um amador equipado com um precário Geloso. O ano correu. Em julho Tom embarcou (de navio) para o Brasil. Na Itália, João e Astrud romperam e se separaram - João foi para Paris, Astrud voltou para o Rio. Em Paris, João conheceu uma estudante chamada Miúcha e convidou-a para ir a Nova York com ele para servir-lhe de secretária. Miúcha aceitou. Em novembro, Creed Taylor finalmente tirou Getz/Gilberto da geladeira e começou a ouvi-lo para ver o que saía dali. E gostou do que ouviu. Quanto mais o ouvia mais gostava do disco e em particular das duas faixas com Astrud. A onda da bossa nova já passara nos Estados Unidos - a dança que Arthur Murray dono de uma famosa academia tentara inventar para ela fora um fiasco de público - e era utópico sonhar com um sucesso de vendas. Mas o que ele tinha a perder? Creed preparou o LP para soltá-lo na íntegra e para um single em 45 rpm com duas faixas, amputou "The Girl from Ipanema" e "Corcovado" das participações de João Gilberto, conservando apenas os vocais de Astrud. Com isso cortou mais de dois minutos de cada faixa e as deixou com um tempo mais convidativo para que as rádios as tocassem. Incluiu o disco no suplemento "latino" da Verve e, em fevereiro de 1964, disparou a primeira cópia do single para uma pequena estação simpática ao jazz, no estado de Ohio. Dias depois recebeu um telefonema do programador: os ouvintes, siderados, não paravam de ligar para a estação perguntando o que era "aquilo". No Rio e no Brasil, durante o ano de 1964, "Garota de Ipanema" podia ser qualquer coisa, menos uma novidade. Todo mundo, exceto dom Helder Câmara já a tinha gravado e em todos os formatos possíveis: cantor-solo, em dupla, trio de jazz, conjunto vocal, quarteto de cordas, grande ou pequena orquestra e arranjo sinfônico. Pery Ribeiro fora o primeiríssimo, depois o Tamba Trio e em seguida, Claudette Soares. Mas ninguém no Rio esperava por aquela versão contendo Stan Getz, João Gilberto, Tom Jobim, Tião Neto, Milton Banana - e uma doce voz feminina que já não era a de "Astrudinha, mulher de João" como a chamava Vinicius de Moraes mas, agora a da famosa Astrud Gilberto. Ninguém esperava por aquilo - nem no Rio, nem no resto do mundo. Em poucos meses o single de "The Girl from Ipanema" chegou ao 5º lugar na lista da Billboard e permaneceu 11 semanas nela. Já o LP bateu num inacreditável 2º lugar e eternizou-se por 96 semanas na lista. E por que não chegou ao 1º? - perguntará você. Porque o 1º lugar semana após semana em todas as listas de 1964, pertenceu a algum LP dos Beatles, dos vários que foram lançados naquele ano nos Estados Unidos. Mas a Getz/Gilberto coube uma honra que ninguém tira: a de ser o LP de jazz mais vendido de todos os tempos. Vendido e respeitado. Foi um terremoto, uma avalanche. Em poucos meses com seus rendimentos nesse disco, Stan Getz comprou uma casa de 23 quartos em Irvington (NY), que pertencera a Frances, irmã de George Gershwin. João Gilberto faturou de saída 23 mil dólares, bom dinheiro então. E Astrud Gilberto talvez a principal responsável pelo estouro do disco ganhou pela tabela estabelecida pelo Sindicato dos Músicos de Nova York: 168 dólares por dois dias de trabalho - e mesmo assim, Stan Getz achou demais. Ao saber que Getz resmungara pelo cachê pago a Astrud, seu amigo o também sax tenor Zoot Sims, comentou no Jim and Andy's: "É bom saber que o sucesso não alterou Stan. Ele continua a ser o mesmo filho-da-puta de sempre." Com "The Girl from Ipanema" tocando em todas as rádios, lojas de discos, máquinas automáticas, vitrolas domésticas e sistemas de som em 1964, seus criadores tiveram de voltar correndo para Nova York. Stan Getz foi o primeiro. Retomou o repertório da bossa nova e mandou chamar Astrud no Rio - e lá se foi com ela para uma longa temporada em nightclubs dos Estados Unidos e da Inglaterra. De uma escala em Nova York saiu um LP ao vivo - Getz Au Go Go - que, sempre graças a Astrud, chegou à parada da Billboard no dia 19 de dezembro, bateu no 24º lugar e permaneceu por 46 semanas. E esse foi apenas o começo da carreira de Astrud, que em 1965 ganhou um LP só para ela, The Astrud Gilberto Album e cujos discos seguintes como Beach Samba e Look to the Rainbow, todos produzidos por Creed Taylor a tornaram um sinônimo dos anos 1960 para os americanos. Tom também voltou para os Estados Unidos para participar do primeiro LP de Astrud e para gravar uma série de grandes LPs dele mesmo, mas na Warner, que o tirou da Verve. E, a partir dali ninguém mais o segurou. Quanto a João Gilberto que já estava por lá foi convidado por Getz a se apresentarem juntos no Carnegie Hall em outubro de 1964, do que resultou um Getz/Gilberto #2 ao vivo sem comparação com o primeiro. Em 1965 sem Stan mas acompanhado por gente de luxo como o pianista Bill Evans ou o trompetista Art Farmer, João saiu pela estrada apresentando-se em Boston, Washington, Los Angeles e creia comparecendo aos shows como um bom menino e não se atrasando para nenhum. E tudo por causa de Getz/Gilberto. De passagem foi também um LP que faturou cinco Grammys - um deles o de disco do ano e nada menos do que dois para João Gilberto como cantor e como violonista. (João enfiou os troféus num armário em Nova York e esqueceu. Tempos depois numa mudança vendeu o armário com os Grammys e tudo e nunca mais os viu.) Por causa desse LP, Creed Taylor retomou seu repertório de bossa nova e além de Astrud, lançou vários outros brasileiros de enorme sucesso nos Estados Unidos como o organista Walter Wanderley, o percussionista Airto Moreira, o próprio Tom (seus discos Wave, Tide e Stone Flower, que estão entre os melhores de sua carreira foram todos feitos para Creed) e principalmente, Eumir Deodato, que vendeu milhões com seu surpreendente arranjo de baião eletrônico para "Also Sprach Zarathustra", de Richard Strauss e tema do filme 2001: Uma Odisséia no Espaço. Uma única e lamentável injustiça manchou a odisséia de Getz/Gilberto: a ausência de Tião Neto nos créditos do LP. Em seu emprego fixo na época, Tião era contrabaixista do Bossa Três e este era contratado de Sidney Frey, dono da gravadora Audio Fidelity - logo Tião não podia aparecer entre os músicos do disco. (Poderia se a Verve tivesse concordado em pagar a Frey.) Com isso o contrabaixista creditado em Getz/Gilberto ficou sendo Tommy Williams, músico regular de Stan mas que nem sequer passou pela porta do estúdio enquanto Tião, lá dentro dava uma fabulosa sustentação aos outros músicos. A provar sua participação se não bastasse a palavra dos outros,há as fotos de David Zingg e o contracheque da Verve com o valor de seu cachê pelo trabalho: os mesmos 168 dólares de Astrud. Bem a seu estilo, Tião nunca disse uma palavra a respeito - foi nominalmente deixado de fora de um dos maiores discos de todos os tempos e só lhe restou a glória de viajar o mundo inteiro com os conjuntos de Sergio Mendes e mais tarde o de Jobim. Por causa de Getz/Gilberto a América adotou João Gilberto, Tom Jobim e Astrud Gilberto, absorveu-os e tratou-os como se eles fossem seus. E por muito tempo, pareceu que eles eram mesmo. Entre os Estados Unidos e o México, João Gilberto ficou 20 anos fora do Brasil. Tom ia e voltava, meses aqui e outros tantos por lá - numa dessas, gravou dois LPs com Frank Sinatra - e assim foi até o fim, em 1994. E Astrud nunca mais voltou - só a passeio, e cada vez mais raramente. Mais tempo se passou e além de Tom, morreram Getz, Tião Neto, Milton Banana e David Zingg. "Garota de Ipanema", a canção propriamente dita é que ficou imortal: tornou-se a primeira ou a segunda mais tocada do século XX, alternando-se com "Yesterday", de Lennon & McCartney. E Getz/Gilberto que nunca saiu de catálogo, inscreveu-se num pequeno panteão de perfeições criadas pelo homem (e, no caso, uma mulher) à revelia e a despeito de si mesmo. Perfeições que,um dia,esse homem terá de fazer por merecer. Fonte: Ruy Castro (Portal Brasileiros - Edição 9, Abril/2008)
The Girl From Ipanema
Faixas:
1. The Girl From Ipanema
2. Doralice
3. Para Machuchar Meu Coracao
4. Desafinado (Off Key)
5. Corcovado (Quiet Nights Of Quiet Stars)
6. So Danco Samba
7. O Grande Amor
8. Vivo Sonhando (Dreamer)
Musicos:
Stan Getz - Sax Tenor
Joao Gilberto - Violão & Vocal
Antonio Carlos Jobim - Piano
Tommy Williams - Baixo Acustico
Milton Banana - Bateria
Astrud Gilberto - Vocal
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Boa audição - Namastê
Um comentário:
Muito Obrigado pelo arquivo!
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