quarta-feira, 1 de maio de 2019

Noites tropicais: solos, improvisos e memórias musicais - Parte III (Final)

No rádio. Mas funcionava: o público em casa ouvia o artista americano e também a gritaria do público do auditório delirando com as dublagens que Tony Tornado e Gerson King Combo faziam de Chubby Checker e Little Richard. Depois havia o concurso de dança, animado e comentado por Imperial, e finalmente começava a música ao vivo: anunciado estrepitosamente por Imperial como “o Elvis Presley brasileiro”, Roberto Carlos, acompanhado pelos Snakes, com Erasmo Esteves no violão e nos backing-vocals. Em casa os ouvintes da Zona Norte e dos subúrbios ficavam incendiados com a gritaria e animação do estúdio. E a festa continuava: “E atenção, brotos, porque vem aí o Little Richard brasileiro!”, anunciava Imperial. E Tim Maia entrava e cantava um rock explosivo acompanhado pelos Snakes e levantava o auditório. Tim era amigo de Erasmo desde criança na Rua do Matoso, na Tijuca, quando ainda se chamava Tião e entregava marmitas da pensão de seus pais, dona Maria e seu Altivo, considerado no bairro um mestre dos temperos. Antes de música, o pequeno Tião aprendeu a comer bem e sempre foi gorducho. Quando saía para entregar as marmitas, pendurava-as num cabo de vassoura que levava nos ombros, como um pescador chinês de carnaval. Todos os dias na hora do almoço ele saía para fazer as entregas e, balançando suas latas, passava pelo Largo da Segunda-feira, onde sempre rolava animada pelada. Era irresistível. Em campo, Tião era o mais pesado e, às vezes, o mais violento: ia na bola como quem vai num prato de comida. O exercício lhe abria o apetite e Tião abria as marmitas e tomava uns goles de sopa aqui, beliscava um pastel ali, umas bocadas de arroz e feijão acolá, um pedaço de doce, e com as marmitas mais leves seguia para a entrega. Tanto quanto de comida, Tião gostava de música. Começou a aprender violão sozinho, ensinou três acordes para Erasmo e os dois tentavam tardes inteiras, em vão, fazer no violão as complexas harmonias do “Desafinado” de João Gilberto, que adoravam. Quando depois Tião foi para os Estados Unidos, se correspondia com Erasmo assinando “Tim Jobim” e recebia abraços de “Erasmo Gilberto”. Tião tinha 16 anos quando resolveu que iria para os Estados Unidos. Começou a dizer para todo mundo que ia morar com uma família americana num programa de intercâmbio, fez uma campanha de arrecadação de fundos na família e conseguiu, depois de suplicantes visitas, convencer o bondoso pároco da igreja da Tijuca a completar o que faltava para a passagem de avião, só de ida. Tião tinha falado tanto para tanta gente e dado tantos detalhes da sua “família americana” que acabou ele mesmo acreditando em sua ficção e se decepcionando: na chegada a Nova York ninguém o esperava no aeroporto. Em Manhattan e depois na vizinha Tarryton, Tião virou Tim e trabalhou de garçom, entregador de pizzas, aprendeu inglês, conheceu a música negra americana, cantou em grupos vocais, fez pequenos furtos e experimentou fartamente tudo que era droga leve e pesada. Uma noite, com três crioulos amigos, foi preso em Daytona Beach, onde estavam fumando maconha dentro de um carro roubado. Passou uma temporada na cadeia em Daytona e foi deportado para o Brasil. Na Tijuca, de tanto cantar o rock “Bop-a-lena”, Tim ganhou o apelido de “Babulina”. Mas “Babulina” também era o apelido de um garotão do Rio Comprido, um mulato atlético chamado Jorge, que também cantava “Bop-a-lena”, tocava violão e fazia parte da gangue “Os cometas”. Nas rodas da Praça da Bandeira, ponto de encontro das turmas da Matoso e do Rio Comprido, já se comentava que Tim iria ter problemas com Jorge, que se considerava o dono do apelido por cantar a música há mais tempo. Mas tudo se resolveu pacificamente e Jorge acabou participando de uma serenata com Tim e Erasmo, no Beco do Mota, debaixo da janela da generosa Lilica, que costumava receber a turma toda em sua cama, um por um. Chegavam a se formar alegres e ansiosas filas de dez, doze garotos à sua porta, e muitos jovens tijucanos e rio-compridenses tiveram com ela a sua iniciação sexual. Mas naquela noite acabaram todos na delegacia por reclamação dos vizinhos e o violão foi apreendido: a serenata não era de valsas e canções mas de twist e rock and roll. Com suas festas de rua, na Casa da Beira e na Vila da Feira, os clubes portugueses da área, com suas quermesses e suas festas juninas, a vida na Zona Norte era animada e Jorge estava em todas com seu violão, cantando “Bop-a-lena” e sempre agradando as meninas, até que começou a fazer suas próprias músicas, passou a usar o nome de Jorge Ben e começou a tentar a vida nos bares de Copacabana. Tudo virou Bossa Nova, do presidente à geladeira, do sapato à enceradeira, a expressão ficou muito maior do que a música que a originara. Amplificada pela publicidade, caiu na boca do povo para designar tudo que era (ou queria ser) novidade: eventos e promoções, comidas e bebidas, roupas, veículos, imóveis, serviços e pessoas que nada tinham a ver com música e muito menos com a música de João Gilberto e Tom Jobim. Não havia mais possibilidade de qualquer controle: se tudo era bossa nova, então nada mais era bossa nova. Até a bancada da UDN na Câmara tinha a sua “bossa nova”. Era preciso fazer alguma coisa: Ronaldo chegou a pedir a um advogado, meu pai, que redigisse os estatutos de um “Clube da bossa nova”, que daria shows, discos e um jornalzinho para seus sócios. Carlos Lyra registrou a marca “Sambalanço” e lançou seu disco na Philips com este título. A Odeon dispensou a “Turma” e resolveu gravar apenas um disco com quatro faixas, então chamado compacto duplo, com o conjunto de Roberto Menescal. Os dois discos passaram longe do sucesso popular mas provocaram intermináveis discussões nas rodas musicais de Copacabana. O disco de Carlinhos, além de “Rapaz de bem”, de Johnny Alf, tinha outras boas músicas, como “Maria ninguém” e “Ciúme”, arranjadas em estilo “jobiniano” e com a batida da bossa nova, mas metade do disco — talvez a melhor — era de toadas e sambas-canções. E a performance do cantor não era entusiasmante. No de Menescal, ótimas músicas, como “Céu e mar”, de Johnny Alf, mas nem cantor tinha: guitarra, baixo, bateria, piano, flauta e trompa produziam um balanço animado, um timbre diferente e tocavam arranjos bem jazzísticos, bem Copacabana. E eu ouvia os dois discos o dia inteiro. - Fonte: Incerto do livro, Noites tropicais: solos, improvisos e memórias musicais, Nelson Motta - Editora Objetiva, 2000 - 461 páginas
Boa leitura - Namastê

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